1.400 reais por pessoa: a escravidão continua na Rússia

Estilo de vida
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Correspondente do Russia Beyond participa de inspeção surpresa para libertar nigerianas da escravidão. Mais de um milhão de pessoas são escravas no país.

A moça escapou das mãos da polícia com agilidade. Os chinelos de borracha escorregaram dos pés e ficaram à beira da porta do lado de fora, enquanto ela corria descalça pelos pátios escuros. Sua "amiga" fez o mesmo: aproveitou o momento e correu do carro de polícia direto para a escuridão.

Bella assiste ao rebuliço pelo para-brisa. Ela foi trazida do mesmo apartamento que as “fugitivas”, mas se sentou de maneira submissa no carro. Isto porque foi ela mesma quem denunciou tudo, contando sobre o bordel de nigerianas onde passou mais de um mês como escrava sexual.

Amaldiçoada pelo vodu

Sudoeste moscovita, bairro de Tiôpli Stan, a 18 quilômetros de distância do Kremlin de Moscou. Blocos idênticos de prédios altos, pátios desertos. A apenas uma estação de metrô dali se encontra a Universidade da Amizade dos Povos, com milhares de estrangeiros. Mas, se você não souber ler em russo os nomes das ruas, nunca saberá onde está nos arredores de Tiôpli Stan.

Ali viviam Bella e Joy, outra garota de um bordel na rua vizinha. Elas trocavam mensagens de SMS e, às vezes, seus caminhos se cruzavam no "ponto" de prostituição.

Bella conseguiu emprego na Rússia quando ainda vivia na Nigéria. Qual era exatamente o trabalho, não informaram. Mas prometeram que tudo ficaria bem.

Fizeram para ela um cartão de torcedor da Copa e, assim, ela entrou no país durante o período em que não era necessário um visto propriamente dito. Muitas moças chegaram aos montes no país desta forma.

No aeroporto de Moscou, Bella foi recebida por sua futura cafetina, que confiscou seu passaporte. Depois, levaram-na a um apartamento em Tiôpli Stan, onde já viviam há mais de três anos outras nigerianas.

Para receber a liberdade, impuseram-lhe a necessidade de pagar uma “dívida” de 55.000 dólares, que ela teria que quitar trabalhando como prostituta. Ameaçaram-na e lhe prometeram grandes problemas se ela tentasse contatar a polícia.

Joy foi levada ali sob um pretexto diferente. Na Nigéria, ela participava de rituais de vodu e, em um deles, ela foi “amaldiçoada”. Para terminar com a maldição, ela teria que pagar, e lhe ofereceram imediatamente a oportunidade de fazer dinheiro rápido na Rússia.

"Trouxemos uma galinha e um pombo, cortamos, derramamos o sangue da galinha e do pombo em um copo e misturamos com álcool. Eu bebi isso. Depois, o Baba Lau disse que, se eu não pagasse, o Mal recairia sobre mim”, conta Joy.

O que aconteceu com ela depois foi o mesmo que com as outras: foi levada a Moscou e recebeu sua “dívida”. Todos os dias era levada de táxi para o “ponto” na estrada e prometeram que se algo acontecesse seu passaporte seria destruído.

A cafetina lhe disse: "Quando eu tinha acabado de chegar na Rússia, também tinha medo. Mas quando eu ia trabalhar, era corajosa”.

Depois disso, a cafetina lhe contou uma história de um cliente que queria jogar uma moça pela janela e ela, com medo, pulou pela janela primeiro. Ela aconselhou: “Fique longe da janela. Se Deus estiver ao seu lado, você conseguirá pagar a dívida rápido”.

No início deste semestre, Joy e Bella conseguiram entrar em contato com voluntários da organização russa “Alternativa”, que ajuda pessoas a deixarem a escravidão. Joy foi libertada primeiro e Bella, uma semana depois.

Como se compra uma pessoa

O número de escravos na Rússia ultrapassou um milhão de pessoas, de acordo com a fundação antiescravista sem fins lucrativos “Walk Free”. No mundo todo, há pelo menos 45,8 milhões de escravos.

A Rússia ocupa o 64º lugar do Global Slavery Index, ou seja, há 5,5 escravos para cada 1.000 cidadãos do país. A Rússia não produz estatísticas internas sobre isto.

“Para nós, parece engraçado: como alguém pode acreditar em uma maldição de vodu? Para intimidar as meninas, as cafetinas dizem até que seus maridos são amigos do Pútin. E elas acreditam! Essas meninas não estudaram, elas não entendem, por exemplo, que dá para reemitir o passaporte ou que o vodu é um absurdo”, diz Oleg Melnikov, diretor da organização Alternativa.

Estamos em um café de narguilé no centro de Moscou, no centro de entretenimento Krásni Oktiabr (Outubro Vermelho). O escritório da organização Alternativa fica em instalações contemporâneas em estilo loft nas proximidades.

Ali, em um quadro negro na parede se lê "O Sudão é nosso". Isto significa que a organização tem acordos com o Sudão do Sul para resgatar pessoas em conjunto com a polícia local. Agora, a Alternativa está se expandindo ativamente por todo o mundo.

Segundo Oleg, a exploração sexual, como ocorreu com  as nigerianas, é somente uma parte da enorme “indústria” de escravos. A escravidão trabalhista é mais comum, e os criminosos seguem uma rotina estabelecida.

As pessoas das províncias partem para as cidades grandes para trabalhar e não têm dinheiro nem para a hospedagem. Elas ficam na estação ferroviária por alguns dias, olham os anúncios etc. Depois, um aliciador se aproxima e lhes oferece um emprego “no sul”. Dizem que não é preciso nenhuma habilidade especial e que pagam bem.

A pessoa concorda. O aliciador sugere que eles “celebrem o acordo” e tomem uma bebida. A bebida já contém clozapina ou clonidina. A pessoa dorme por dois dias. Ela acorda em algum lugar como o Daguestão, em uma fábrica, sem seu passaporte ou seu telefone. Ela quer sair, mas é informada: “Você foi comprado. Ou vai pagar ou vai trabalhar”.

“A pessoa pensa que vai trabalhar um mês e depois será libertada. Mas um mês depois lhe dizem que ela sumiu com um saco de cimento ou uma ovelha, e que ela também deve dinheiro pela comida etc. Quando as pessoas tentam fugir, elas quase sempre são capturadas, espancadas e mandadas de volta ao trabalho”, diz Oleg.

Ele conta os preços. Um escravo do trabalho custa R$ 1.400, uma escrava sexual de R$ 8.500 a R$ 11.300. Um deficiente em cadeira de rodas ou uma mulher idosa são vendidos por R$ 2.800 cada e um bebê, por cerca de R$ 8.500. Os últimos são usados em mendicância.

“Um caso ímpar. Uma idosa perdeu a visão quando ainda jovem. Ela morava sozinha em Lugansk, na Ucrânia. Em 2012, vieram até ela e lhe disseram: ‘Na Rússia há um programa para restaurar a visão e há uma vaga’”, conta Oleg. Ele inala aquela fumaça densa e toma um gole de Fanta antes de continuar. “Eles então a levaram a Moscou, costuraram seus olhos e a colocaram do lado de fora da estação de trem de Kursk para mendigar. Quanto mais seus olhos inflamavam, mais dinheiro os transeuntes deixavam”.

Escala

Na noite da inspeção no bordel nigeriano, só três pessoas foram à delegacia: Bella, uma das "fugitivas" (a segunda nunca foi pega) e um cafetão - um nigeriano enorme de calças vermelhas e regata de redinha amarelo-ácido.

Os vizinhos dizem que ele é jornalista e que trabalha em uma universidade russa em Moscou. O que se revelou é que ele é “homem multitarefas”: paga subornos, negocia com a polícia e organiza seguranças.

Fica claro então que outras mulheres africanas no bordel já tinham pago sua "dívida" e se prostituíam agora voluntariamente. Todas, exceto Bella. Mas ninguém acredita em Bella. Ficamos três horas na delegacia.

Os ativistas explicam que tudo depende do bairro - nem todos os policiais são assim. Bella simplesmente não teve sorte e em outras delegacias a teriam ajudado – tanto quanto possível, lógico.

Os ativistas da Grajdânskoie Sodêistvie (em português, “Assistência Cívica”), outra organização pública, acreditam que a legislação russa nesta área não funciona. A coleta de evidências, as testemunhas e os interrogatórios compõem um processo que leva meses.

“Quando uma pessoa é retirada do cativeiro, o que fazer com ela depois? Ninguém leva essas pessoas para algum tipo de centro onde elas cuidarão delas, porque esse tipo de coisa simplesmente não existe na Rússia. Na melhor das hipóteses, a pessoa volta a viver no país de onde veio. Elas são convocadas [pelo tribunal para dar provas], mas não podem vir. E o caso é fechado”, lamenta Melnikov.

O Russia Beyond não teve resposta a um pedido de comentário da chefe da Ouvidoria de Direitos Humanos da Rússia, Tatiana Moskalkova. O Ministério do Interior da Rússia também não fez comentários sobre o problema da escravidão e sobre a luta contra isto, somente fornecendo estatísticas sobre casos criminais.

De acordo com os números, em 2017 seis casos criminais foram iniciados em toda a Rússia sob o artigo "Uso de trabalho escravo", assim como 21 casos de tráfico humano.

Um total de 374 casos foram investigados no ano passado sob o artigo "Rapto de pessoas" e 458 casos, sob o artigo "Privação de Liberdade Ilegal". No total, são 859 os casos que, de alguma forma, envolvem vítimas da escravidão moderna.

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