Por que o vegetarianismo era tão popular na Rússia tsarista?

História
GUEÓRGUI MANÁEV
Havia uma longa história de abstenção de carne por motivos religiosos, mas o vegetarianismo ganhou mesmo popularidade no Império graças a um dos russos mais famosos do século 19.

“Era hora do jantar e entramos na sala. Havia uma faca de cozinha enorme ao lado do posto da minha tia na mesa e uma galinha viva estava amarrada na perna de uma cadeira. O pobre pássaro estava chutando e puxando a cadeira. ‘Viu?’, disse o pai à irmã. ‘Sabendo que você gosta de comer coisas vivas, trouxemos uma galinha. Nenhum de nós é capaz de matá-lo, então, deixamos essa tarefa mortal para você. Faça você mesma.’ ‘Mais uma de suas piadas!’, exclamou a tia Tania, rindo. ‘Tania, Masha, agora desamarrem o pobre pássaro e devolvam-lhe a liberdade’. Corremos para cumprir o desejo da tia. Depois de soltar o frango, servimos massa, legumes e frutas. A tia comeu tudo com muito apetite.”

Este é um trecho das memórias de Tatiana, filha de Lev Tolstói. Ela, sua irmã Masha e seu pai eram vegetarianos convictos. Mas, Sofia Andreievna, esposa do escritor, costumava se queixar do vegetarianismo do autor, que para ela causava “a complicação de um jantar duplo, custos extras e trabalho extra para as pessoas”. Além disso, Sofia sentia que a refeição vegetariana “não o nutria o suficiente”. Ainda assim, Tolstói persistiu e não comia carne. Na Rússia, porém, ele não era o único vegetariano.

População predisposta ao vegetarianismo

A nutricionista Jenny Schultz, que abriu sua primeira cantina vegetariana na Hungria em 1896, inaugurou outra em Moscou em 1903. Ao analisar a postura russa em relação ao vegetarianismo, Schultz, que havia estudado especificamente “gastronomia vegetariana” na Suíça, escreveu: “Vários, sobretudo longos, períodos de jejum são observados por ricos e pobres, na cidade e no campo, com muita consciência. Esta é a razão pela qual a população local é tão facilmente predisposta ao vegetarianismo.”

Na Rússia, o jejum sempre teve especial importância. Peter Brang, um estudioso do vegetarianismo russo, escreveu: “Para o monasticismo russo, diferentemente do monasticismo ocidental (com exceção das ordens dos trapistas e cartuxos), o jejum qualitativo – abster-se de comer carne – é uma provisão básica”. Bons monges jejuavam o ano todo, e apenas ocasionalmente se permitiam comer peixe. Para os fiéis comuns, haveria quatro jejuns principais – a Grande Quaresma, de Pedro, da Dormição e o de Natal, juntamente com os dias “comuns” de jejum  (toda quarta e sexta-feira), davam um total de cerca de 220 dias de jejum por ano, que os fiéis também tentavam seguir.

Em 1074, a Crônica Primária menciona: “A época da Quaresma purifica a mente do homem”. A hagiografia do grande santo russo Sérgio de Radonege menciona que, ainda bebê, ele sequer tocou os seios da mãe na Quaresma; assim, sua santidade se manifestou na infância.

O terreno espiritual para o vegetarianismo na Rússia já estava preparado. Mas a Igreja Ortodoxa Russa condenava a prática do vegetarianismo. Na Rússia, havia seitas cristãs que rejeitavam completamente a carne – os Khlistis e os Skoptzi. Como a igreja se opunha veemente a esses grupos, o vegetarianismo também era mal visto. A prontidão de alguém para se abster de carne logo despertava a suspeita dos oficiais da Igreja de que aspirações sectárias poderiam estar por trás disso.

Em 1913, o camponês Nikolai Lapin, da região de Saratov, apresentou seu artigo “Por que me tornei vegetariano” para a revista Vegetarian Review. Lapin abandonou o consumo de carne aos 18 anos, porque, desde a infância, tinha nojo de ver o gado sendo abatido. Logo, seus colegas aldeões, escreveu Lapin, começaram a questionar se ele seria capaz de fazer o trabalho duro da fazenda e, quando perceberam não haver problema com isso, começaram a dizer que ele havia sido seduzido pelo diabo. A dieta vegetariana levantava dúvidas entre as pessoas comuns – não apenas a esposa de Tolstói, que reprovou a ideia do marido ter ensinado as filhas a “não comer carne – elas comem vinagre e óleo, ficam verdes e magras”.

Lev Tolstói e a comida “sem abate”

O conde Tolstói declarou rejeitar o consumo de carne por volta de 1883-1884, quando conheceu o aristocrata e oficial militar aposentado Vladimir Tchertkov, que já era vegetariano. Em 1885, o escritor começou a entrar em conflito com sua esposa pela recusa em comer carne e, em 1892, escreveu um ensaio intitulado “O Primeiro Passo” – um apaixonado manifesto pelo vegetarianismo. “Como é possível matar uma vaca que vem alimentando você e seus filhos com leite há anos? A ovelha que te aqueceu com sua lã quente? Pegar – e matar! Cortar a garganta e comê-la?”, questionava Tolstói.

‘O Primeiro Passo’ teve um enorme impacto – muitos intelectuais se voltaram para o vegetarianismo. O artista Iliá Repin descreveu entusiasticamente seu vegetarianismo: “Os ovos foram jogados fora (a carne já havia sido deixada antes). Saladas! Que charme! Que vida (com azeite!) Sopa de feno, de raízes, de ervas – é o elixir da vida. Frutas, vinho tinto, frutas secas, azeitonas, ameixas… as nozes são energia. É possível listar todos os luxos de uma mesa com vegetais?”. Em 1900, Repin casou-se com Natalia Nordman, uma das famosas propagandistas russas do vegetarianismo, que, além de recusar o “abate” para consumo, não usava peles – o que chocava a sociedade nobre na época.

Quantas cantinas vegetarianas havia na Rússia?

“Aqui, o vegetarianismo é visto principalmente pelo ideal; a questão da saúde ainda é pouco conhecida”, observa Jenny Schultz em seu artigo. De fato, os primeiros vegetarianos russos não enfatizaram os danos da carne para a saúde. Os protestos contra a matança estavam no centro de suas ideias, por isso a comida vegetariana foi apelidada de “sem abate”.

Mas o vegetarianismo na Rússia surgiu antes de Tolstói. Um de seus seguidores, Iúri Iakubovski, escreveu que, em 1888-1889, a primeira sociedade vegetariana – chamada “Nem Peixe nem Carne” – estava celebrando seu 25º aniversário em São Petersburgo. Pressupõe-se, assim, que já na década de 1860, os vegetarianos estavam unidos entre si – mas até então sem argumento científico. Isso só veio a ocorrer em 1878, quando um artigo intitulado “A nutrição humana em seu presente e futuro” foi publicado pelo reitor da Universidade de São Petersburgo, o botânico Andrei Beketov. O autor defendeu que o homem era naturalmente adaptado à nutrição à base de plantas, apontou o alto custo da carne e ainda lembrou que o matadouro é “um lugar nojento, fedorento e sangrento onde cortam, rasgam, picam [carne] e drenam o sangue das veias”. “O futuro pertence aos vegetarianos”, concluiu Beketov. Mas, nem mesmo a autoridade do reitor foi capaz de convencer o público – várias refutações e piadas surgiram após o artigo de Beketov.

No entanto, após a publicação de ‘O Primeiro Passo’, a atitude em relação a Beketov mudou. Seu artigo foi reimpresso duas vezes, com uma circulação total de cerca de 15.000 exemplares pela editora de Tchertkov, a ‘Posrednik’. Em 1903, foi a vez de publicar uma coleção compilada por Tolstói – ‘Nutrição sem abate, ou vegetarianismo. Pensamentos de diferentes escritores’ –, que continha 250 citações sobre os benefícios do vegetarianismo.

A primeira cantina vegetariana, do casal inglês Mr. and Mrs. Mood, foi inaugurada em Moscou em 1896 – mas quase fechou de imediato. Em 1904, já existiam quatro dessas cantinas. Retratos do “sol do vegetarianismo russo” – Lev Tolstói – estavam pendurados nas paredes. Em 1914, de acordo com os cálculos de Brang, havia 73 cantinas vegetarianas em 37 cidades, principalmente em São Petersburgo (nove) e sete em Kiev e em Moscou.

As cantinas eram bastante populares – havia uma em Moscou, na rua Gazetny, que servia até 1.300 pessoas por dia. As estatísticas sobre cantinas compiladas pela Sociedade Vegetariana de Moscou mostraram um aumento no número de fregueses: de 11.000 em 1909 para mais de 642 mil em 1914. A Cantina Vegetariana Pública de Kiev, por exemplo, serviu, em 1911, 489.163 refeições para 200.326 frequentadores.

Paralelamente, começaram a ser publicadas as revistas ‘Vegetarian Review’ e ‘Vegetarian Bulletin’, bem como o almanaque ‘Vida Natural e vegetarianismo’.

Foi nos últimos anos antes da revolução que o vegetarianismo se tornou comum e generalizado na Rússia. Mas, este desenvolvimento foi interrompido pela ofensiva do poder soviético. Nos primeiros anos após a revolução, os bolcheviques não deram atenção aos vegetarianos. Já em 1929, a Sociedade Vegetariana de Moscou foi banida, e vários de seus membros acabaram sendo exilados – para o governo soviético, eles eram “tolstoianos”, portadores da ideologia da não resistência e da não violência, que tinha de ser erradicada. Na URSS, como a Grande Enciclopédia Soviética afirmou em 1951, o vegetarianismo “não tem adeptos”. A Sociedade Vegetariana de Moscou só voltou a ser registrada em 1989.

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