1. Este é mais um filme dos criadores do sucesso internacional ‘Quando Voam as Cegonhas’, que venceu o Grande Prêmio de Cannes em 1958 – o primeiro e o último para o cinema soviético
Mikhail Kalatozov começou sua carreira de diretor nas décadas de 1920-1930 com filmes de vanguarda que foram criticados pelo “formalismo” – ou seja, por focarem na forma em vez do conteúdo. Naquela altura, esta acusação politicamente perigosa foi lançada contra todos os maiores realizadores – tanto Serguêi Eisenstein como Dziga Vertov tiveram a sua cota de rejeição estatal. A época dos experimentos havia passado e os diretores eram então obrigados a fazer uma “Hollywood soviética” – filmes compreensíveis para o grande espectador. Assim, Kalatozov foi literalmente estudar nos Estados Unidos – onde passou vários anos na década de 1940, estabelecendo contatos comerciais entre as indústrias cinematográficas dos dois países.
Na década de 1950, o diretor voltou à ativa. A cada dois anos, ele lançava um filme – um mais ousado que o anterior. Ao longo dos anos, encontrou seu principal parceiro, o virtuoso cinegrafista Serguêi Urusevski. Entre os trabalhos mútuos, dois são os mais famosos: ‘Quando Voam as Cegonhas’, um melodrama que tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial; e ‘Eu sou Cuba’, um poema cinematográfico sobre a Revolução Cubana que se tornaria o penúltimo filme do diretor. Em 1969, Kalatozov filmou a coprodução soviético-ocidental ‘A Tenda Vermelha’, com Sean Connery no papel do explorador Roald Amundsen – e deixou o cinema logo depois.
2. É um dos filmes mais visualmente inventivos da história. E isso não é um exagero
Ao recontarmos brevemente o enredo deste filme, pode parecer que ‘Eu sou Cuba’ é um longa antiamericano padrão feito para o cinema soviético. Em quatro contos, retoma a história do surgimento do movimento revolucionário na ilha. No capítulo um, vemos norte-americanos ociosos que transformaram Cuba em seu parque de diversões pessoal. Os cubanos em si vivem em favelas; a pobreza força as mulheres jovens a se envolverem na prostituição. No segundo conto, um camponês idoso incendeia, em desespero, sua casa e seu canavial, junto com a colheita, ao saber que uma empresa americana está prestes a tirar-lhe suas terras. No terceiro e quarto capítulos, a situação na ilha esquenta – os atritos de rua se transformam em uma onda de indignação popular que derruba o regime pró-americano de Fulgêncio Batista.
No entanto, o seu formato visual – imagens requintadas em preto e branco e ângulos incríveis – transforma o que poderia ser uma peça de propaganda em um poema sobre a união do homem e da natureza. Os céus, o matagal de junco, as cabanas surradas e as casas brancas como a neve se transformam em heróis do filme, iguais aos humanos. Para sermos mais preciso, há somente um personagem principal no filme e ele está indicado em seu nome. É a própria Cuba; ouvimos sua voz (feminina) lendo monólogos ao fundo entre contos. Como este, por exemplo: “Para vocês [dos EUA], sou cassinos, bares, hotéis, bordéis. Mas as mãos dessas crianças e idosos, também sou eu.”
Para promover a imersão emocional total do espectador, os cinegrafistas filmaram tudo segurando as câmeras nas mãos. Estas se movem suavemente como se quebrassem todas as leis da física – subindo alto, depois mergulhando suavemente, até mesmo submergindo na água. Não cabem mais de cinco minutos de filmagem em uma bobina; os autores aproveitaram ao máximo o tempo que lhes foi concedido, muitas vezes filmando cenas longas de uma só vez, sem interrupções. Cada uma dessas filmagens foi meticulosamente preparada e incluiu o uso de diversos dispositivos técnicos como, por exemplo, um guincho, o cabo de um teleférico (a câmera foi fixada nele com a ajuda de um ímã), vários filtros e assim por diante.
Mais de meio século se passou e, ainda hoje, ‘Eu sou Cuba’ continua surpreendendo o público. É igualmente hipnotizante e encantador.
3. Foi filmado em Cuba por uma grande equipe internacional. Não há um único ator soviético no filme
Evguêni Ievtuchenko foi um dos roteiristas – considerado o poeta soviético mais famoso da era do degelo de Khruschov e amado pelo público pró-soviético para muito além de seu país. Comunista, o diretor italiano Pier Paolo Pasolini considerou seriamente Ievtuchenko para o papel de Cristo em seu filme “O Evangelho segundo São Mateus”. O poeta russo viveu por muitos anos em Cuba, onde escrevia reportagens, versos e poemas — e chegou até mesmo a conhecer pessoalmente Fidel Castro e Che Guevara.
O pintor cubano René Portocarrero, que combinava o neobarroco e o surrealismo em suas pinturas, foi um dos designers de produção de ‘Eu sou Cuba’. Obviamente, graças a ele, a cena de dança sinistra e estilosa do primeiro conto parece, hoje, um fragmento de um filme desconhecido de David Lynch. Jean Bouise, um dos melhores coadjuvantes franceses, que trabalhou também com Jean-Jacques Annaud e Luc Besson, estrelou como um colecionador de crucifixos norte-americano no mesmo conto.
4. O lançamento de ‘Eu sou Cuba’ em 1964 passou despercebido. O filme foi redescoberto apenas na década de 1990 – graças a Scorsese e Coppola
O filme não rendeu boa bilheteria – nem Cuba, nem na URSS. Ievtuchenko relacionou o fracasso de público com a desilusão dos próprios cubanos com a Revolução – o filme, romanticamente em preto e branco, era diretamente conflitante com a sombria vida cotidiana das pessoas comuns. Os telespectadores soviéticos também não demonstraram tanto interesse. Por um lado, o longa revelou-se demasiadamente vanguardista; por outro, os críticos de cinema decidiram que era derivativo. “Urusevski repete o uso das descobertas que fez em sua obra-prima anterior, ‘Quando Voam as Cegonhas’”, como descreveu a revista ‘Iskusstvo Kino’ (‘A Arte do Cinema’). O filme acabou sendo esquecido logo após o seu lançamento.
Sua verdadeira fama só veio quase 30 anos depois. Com o esforço de entusiastas, o longa foi descoberto e, pela primeira vez, exibido aos telespectadores norte-americanos em 1992, em um festival em Telluride – e foi um sucesso retumbante. A segunda exibição aconteceu no ano seguinte em um festival em São Francisco. As duas cenas mais virtuosas suscitaram aplausos de pé. Uma empresa dos EUA comprou então os direitos do filme e, com o apoio de dois fãs incondicionais – os diretores Martin Scorsese e Francis Ford Coppola – o restaurou e lançou nos cinemas e em VHS. O diretor brasileiro Vicente Ferraz filmou um documentário intitulado ‘Soy Cuba, O Mamute Siberiano’ sobre como a esquecida obra-prima foi criada.
5. Algumas tomadas podem parecer familiares – o filme é referenciado citado no cinema moderno
Uma das cenas mais famosas do filme, quando a câmera circula por um concurso de beleza e mergulha em uma piscina – foi reproduzida no filme ‘Boogie Nights’ (1997), de Paul Thomas Anderson, e no desenho ‘BoJack Horseman’ (2014-2020). A cena com uma cantora se apresentando em um restaurante se repetiu em um dos episódios da série ‘A Maravilhosa Sra. Maisel’ (2017-2023). Como o próprio Scorsese admitiu, um dos seus melhores filmes, ‘Casino’ (1995), foi rodado sob forte influência deste filme soviético-cubano. A sua citação, daquela época, é amplamente conhecida: ‘Eu sou Cuba’, filmado na década de 1960, “envergonha tudo o que fazemos hoje”.
‘Eu sou Cuba’ figura com frequência nas diferentes listas dos melhores filmes da história do cinema. Por exemplo, a obra-prima de Kalatozov e Urusevski ficou em 825º lugar na lista dos “1.000 filmes para ver antes de morrer” do britânico ‘The Guardian’, e em 688º lugar no “Top 1.000”, de acordo com o ‘The New York Times’; já no “Top 500” da revista ‘Empire’, ficou em 112º lugar – à frente de ‘O Silêncio dos Inocentes’ (1991) e ‘Sete Pecados Mortais’ (1995).
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