Uma mulher casada deixa o marido rico para ficar com o amante - um escritor pobre e fracassado. Para ajudá-lo a escrever e publicar um romance, ela faz um acordo com o diabo e vira uma bruxa.
Esse é o enredo da principal obra da vida de Mikhail Bulgákov, o romance "O Mestre e Margarida", que, segundo pesquisadores, é bastante autobiográfico - apesar do componente mágico.
Marietta Chudakova, uma especialista na obra de Bulgákov, afirma que a última esposa do escritor, Elena Serguêievna, que deixou um importante comandante militar para ficar com ele, pode ter sido uma agente secreta do NKVD (órgão que precedeu a KGB).
Ela também colaborou com uma investigação para que Bulgákov não fosse preso e obtivesse permissão para trabalhar. O romance, portanto, seria um pedido de desculpas do escritor à esposa, uma espécie de confissão sobre os acordos que ela teria feito para protegê-lo.
A obra de Bulgákov é extremamente original. Tem fantasia, sátira e prosa russa de alta qualidade, tudo ao mesmo tempo. Além disso, todos os seus livros têm algum toque autobiográfico.
Filho de um teólogo de Kiev e médico
Bulgákov nasceu em 1891, filho de um professor da Academia Teológica de Kiev, na época, parte do Império Russo. No entanto, ele optou por não seguir os passos do pai, mas cursar a faculdade de medicina da Universidade de Kiev.
A escolha não foi acidental. Seu tio Nikolai Pokrôvski, irmão de sua mãe, era um médico famoso e rico, um luminar da ciência e um verdadeiro ídolo para o jovem Bulgákov.
É justamente ele quem recebe inicialmente vez o sobrinho em Moscou, onde Bulgákov se estabelece e passa muito tempo. E é também o tio ginecologista o protótipo do professor Preobrajênsky, protagonista da história "Coração de Cachorro" - um cirurgião experimental que transplanta a um cão uma glândula pituitária e testículos humanos, fazendo-o se transformar em homem.
Médico rural e morfinômano
Durante a Primeira Guerra Mundial, Bulgákov passou um período como médico na linha de frente e, depois, foi enviado para trabalhar em um pequeno hospital rural na região de Smolensk.
Bulgákov descreveu suas experiências como médico, bem como anedotas curiosas, em uma série de histórias chamada "Anotações de um jovem médico" (1925).
Ainda muito inexperiente, ele é forçado a lidar com muitos casos difíceis: virar um feto no útero, tratar um tumor ocular em uma criança, arrancar dentes...
Em 2012, o livro foi adaptado em uma produção do Reino Unido e estrelada por Daniel Radcliffe.
A série também tem um enredo do conto "Morfina", que não faz parte da série "Anotações de um jovem médico", mas é frequentemente relacionado a esta obra, porque mostra o diário de um médico do interior que acaba ficando viciado em morfina.
Ele descreve como, sob a influência da droga, tem alucinações e como, nesse estado mórbido, observa as revoltas revolucionárias no país. Incapaz de lidar com seu vício em morfina, ele decide se matar.
Bulgákov também foi viciado em morfina. Certa vez, quando ainda trabalhava como médico do interior, ele corria o risco de contrair difteria após uma operação. Por isso, ele tomou medicação antidiftérica, mas teve uma alergia grave, que decidiu aliviar com morfina.
Assim, ele passou a tomar cada vez mais injeções desta droga. Em 1918, ele retornou a Kiev, no meio da Guerra Civil, e continuou a usar a droga ali. Sua primeira mulher, Tatiana Lappa, o ajudou a superar o vício (essa também foi a primeira versão do título da obra).
Bulgákov abriu um consultório médico particular em Kiev, onde tratava principalmente de doenças venéreas. A cidade, engolfada pela revolução e pela guerra civil, estava assolada pelo caos e por roubos. O poder e a ordem mudavam o tempo todo.
Bulgákov descreveu a atmosfera desses eventos e a vida de sua família no romance "A Guarda Branca". Nele, a nobre família Turbin, parte da intelligentsia, tenta manter seu modo de vida, enquanto o mundo ao seu redor desmorona.
Eles recebem oficiais brancos em casa, e o próprio Turbin participa da Guerra Civil ao lado dos brancos. Bulgákov também simpatizava com os brancos - e, mais tarde, passou a não esconder o fato.
No final da Guerra Civil, Bulgákov serviu como médico no Cáucaso, onde começou a escrever. Ele afirmou que tinha um impulso criativo já há muito tempo e, depois de todos os eventos e reviravoltas que vivenciou, abandonou a medicina e se dedicou à escrita.
No início, seus escritos foram publicados em um jornal local de Vladikavkaz, mas depois ficou claro que ele tinha de ir para Moscou.
Em 1921, Bulgákov é novamente recebido em Moscou pelo tio médico, Pokrôvski. Bulgákov passa a publicar em jornais e revistas da capital. Ele escreve folhetins, ensaios e reportagens.
Em especial, colabora estreitamente com o jornal dos trabalhadores ferroviários "Gudok", que tinha um forte departamento satírico, estrelado, entre outros, pelos artigos de Iliá Ilf e Evguêni Petrov, Mikhail Zóschenko e outros grandes humoristas e satíricos.
Finalmente, em 1925, seu primeiro romance, "A Guarda Branca", além de outros contos foi publicado em uma revista literária. Bulgákov foi chamado para interrogatório por causa do rascunho de seu romance "Coração de Cachorro", encontrado durante uma busca. O livro era uma dura sátira ao novo sistema soviético e ao povo soviético.
Mas, milagrosamente, ele não foi punido e o manuscrito lhe foi devolvido. A obra, porém, só foi publicada pela primeira vez em 1987, durante a Perestroika, e imediatamente foi adaptada em um filme televisivo que se tornou "cult".
Dramaturgia e telefonema de Stálin
A verdadeira paixão de Bulgákov era o teatro. Com base no romance "A Guarda Branca ", ele escreveu a peça "Os dias dos Turbin" para o Teatro de Arte de Moscou (MKhAT), que foi um grande sucesso, e o próprio Stálin a assistiu várias vezes - e até a salvou da proibição.
Stálin também gostava, por exemplo, da peça "O apartamento de Zoika", sobre a Moscou da década de 1920 e sobre como arranjavam-se encontros em um apartamento privado disfarçado de oficina de costura.
Também teve grande sucesso no teatro a peça “A corrida”, sobre a última tentativa do Exército Branco de se opor ao Vermelho durante a Guerra Civil e sua evacuação da Rússia,.
Na década de 1930, as coisas começaram a ficar difíceis para Bulgákov. Sua sutil sátira à ordem social soviética começava a ser vista como golpe. A consolidação do poder de Stálin e a nova ordem exigiam que os escritores fossem extremamente claros, empregassem um estilo realista e refletissem as características positivas do poder soviético.
As peças de Bulgákov são proibidas em quase todos os teatros. Sobre a dificuldade de produzir qualquer peça, Bulgákov escreve “Romance teatral” (1936), em que zomba do mundo teatral e literário da década de 1930. A maioria dos personagens tem protótipos reais. O romance, inacabado, só foi publicado na década de 1960.
Em 1930, Bulgákov mal podia se sustentar — seus escritos não eram publicados e suas peças não eram produzidas, e assim não tinha renda. Desesperado, ele chegou a escrever uma carta ao governo, pedindo permissão para emigrar ou receber permissão para trabalhar no teatro.
Em resposta à carta, ele recebe um telefonema do próprio Stálin, que, segundo a mulher de Bulgákov, perguntou-lhe: "O que foi? Você está muito farto de nós?"
A pergunta pegou Bulgákov de surpresa e ele respondeu que, afinal de contas, um escritor não podia criar fora de sua terra natal. Em seguida, Stálin o aconselhou a se candidatar a um emprego no Teatro de Arte de Moscou: "Parece-me que eles vão concordar", disse o ditador.
E, é claro, depois desse telefonema, Bulgákov foi contratado - embora para uma posição um pouco humilhante, como assistente de direção. O importante, porém, era que ele podia trabalhar e ter uma renda novamente para se sustentar.
Bulgákov-mestre e sua esposa, Margarita
Bulgákov levou mais de 10 anos para escrever “O Mestre e Margarida”. Foi um trabalho árduo, mas, ao mesmo tempo, o escritor entendeu que havia pouca esperança de o livro ser publicado - durante a vigência do regime ateísta soviético, escrever um romance sobre Cristo era pedir para não ser publicado.
O livro só foi publicado 20 anos após escrito e depois da morte do autor - e com sérios cortes da censura. Elena Serguêievna, mulher do autor, foi entendida como o protótipo de Margarida – já que ela fez muito para que o romance fosse publicado e para preservar o legado de Bulgákov.
Ela enviou algumas das obras proibidas de Bulgákov para o Ocidente, para que fossem publicadas posteriormente - e para que não se perdessem, caso fossem destruídas ou apreendidas pela KGB.
Atualmente, “O Mestre e Margarida” é um dos romances “cult” mais conhecidos da literatura mundial – e muitos russos sabem de cor trechos inteiros do livro!
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