Por que Hitchcock não é um clássico para os russos?

Cultura
VALÉRI KICHIN
Para os espectadores na Rússia pós-soviética, Hitchcock apareceu de repente ao lado de vários filmes criados por trás da Cortina de Ferro ao longo das décadas. Antes, apenas os poucos críticos soviéticos que podiam viajar para o Ocidente tinham ouvido falar dele ou lido os artigos sobre seu trabalho. Em média, cinco filmes norte-americanos de diretores que os oficiais soviéticos consideravam “progressistas” chegavam por ano às telonas da URSS.

Durante toda a União Soviética, o nome de Hitchcock foi visto em outdoors apenas uma vez, com o filme de detetive “Disque M para Matar” (1954). Em geral, o público soviético não teve acesso a seus melhores filmes – ao menos na época de seus lançamentos.

“A incoerência e o caráter por vezes reacionário de seus pontos de vista políticos, o caráter de suas convicções, formadas sob a influência do catolicismo, conferiram a muitos de seus filmes um caráter claramente conservador”, lê-se no verbete de Hitchcock no Dicionário de Cinema de 1986, a única enciclopédia da sétima arte disponível para os soviéticos na época.

Mesmo em exibições fechadas para especialistas, seus filmes eram raramente exibidos: cinéfilos inteligentes achavam-nos muito vulgares, pois encaravam com desprezo os gêneros de entretenimento de massa.

A proposta de Hitchcock parecia alheia ao método do “realismo socialista”, as abordagens freudianas de seus filmes eram consideradas pseudocientíficas. Por esse motivo, a escola de suspense psicológico do cineasta britânico, que alimentou a linguagem cinematográfica de todo o mundo por anos, passou quase despercebida na Rússia: assustar e causar nervosismo nos espectadores era considerado uma ocupação indigna na União Soviética.

Os termos thriller e suspense nem sequer existiam. Os thrillers de estilo soviético eram qualificados sob o termo ostrosiuzhetnoe kinó (filmes de ação), enquanto o suspense – quando e se penetrava no cinema soviético – vinha na forma enobrecida do cinema de autor, como em “Stalker” e “Solaris”, de Tarkóvski, sensível às tendências artísticas internacionais.

Tarkóvski foi um dos poucos que utilizou o gênero popular fantástico em seus filmes, que ninguém se atreveria a considerar cinema de entretenimento, e recorria a ele para criar nas telonas uma atmosfera de tensão opressiva mediante escorços, luz, som e ritmo. Mesmo assim, de acordo com o testemunho do famoso cinéfilo russo Vladimir Dmitriev, o autor de “O Espelho” não ficava entusiasmado com o trabalho do criador de “Psicose”.

É fácil, porém, rastrear o método de Hitchcock, ainda que intuitivamente concebido, nos thrillers de Vladímir Khotinenko, tanto em “Makárov”, sobre um poeta que, em busca de uma sensação de segurança perdida, compra uma pistola Makárov para convertê-la em sua escrava; como em “72 metros”, um estudo fatalista sobre um submarino que afunda diante dos olhos de uma cidade portuária inteira. Em ambos os filmes, o suspense é um dos recursos mais importantes e eficazes para retratar as histórias.

Foram esses diretores que prepararam o espectador russo para a compreensão do “gênero proibido”, sem buscar nele uma interpretação social progressista, apenas valorizando seu senso artístico. Quando, no limiar da década de 1990, junto com os milhões de fitas VHS que invadiram ilegalmente o mercado de vídeo soviético, os filmes mais famosos de Alfred Hitchcock chegaram a uma Rússia em transformação, os espectadores entraram nesse universo de terror e psicológico que já lhe era familiar por conta de “Stalker”.

Os títulos de Hitchcock logo se tornaram dignos de exibição nas salas de cinema e de serem adquiridos para fazer parte de coleções particulares. Naquela época, na Rússia, o cinema de massa e o elitista se olhavam com hostilidade.

Nos círculos profissionais de cinema, o esnobismo triunfou. A escola de Hitchcock era considerada formal, mas passou para a categoria de museu, porque, para o cinema realista, era demasiadamente intencional: havia muita arte em seus filmes. Por exemplo, Aleksandr Sokúrov (“Arca Russa”, “Fausto”), premiado nos festivais de Veneza e Berlim, descarta em princípio a manipulação das emoções do espectador e, portanto, distancia-se de Hitchcock.

Hoje, Hitchcock aparece com frequência na televisão russa, e seus trabalhos são apresentados a estudantes de institutos superiores de cinema. As primeiras obras do diretor ainda são relativamente desconhecidas não só na Rússia, mas também no Reino Unido.

Em suas primeiras obras, Hitchcock é um autor de histórias melodramáticas que ainda não fazem com que os espectadores se agarrem aos seus assentos: pode até parecer um diretor completamente diferente para muitos.

Valéri Kitchin é crítico de cinema, colunista da Rossiyskaya Gazeta, laureado com o prêmio nacional “Áries de Ouro” e o “Elefante Branco” da Associação de Cineastas e Críticos de Cinema da Rússia.

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