Depois que os censores soviéticos proibiram a publicação do romance de Pasternak, o escritor enviou cópias a amigos na Europa. E logo ele era impresso em italiano.
TASSEm 1956, após décadas de trabalho, o escritor russo Borís Pasternak terminou seu primeiro romance. Uma história épica de amor e sofrimento, “Doutor Jivago” não estava de acordo com a o realismo socialista, que defendia trabalhadores heroicos e mensagens ideológicas otimistas. As autoridades soviéticas proibiram sua publicação, mas o manuscrito foi contrabandeado para a Itália. No final das contas, caiu nas mãos da CIA — que imprimiu a primeira edição russa do romance e a distribuiu na Feira Mundial de Bruxelas, em 1958.
A feira foi um raro evento a contar com um grande número de cidadãos soviéticos, já que a Bélgica emitiu 15.000 vistos para visitantes provenientes da URSS. Foi, portanto, uma excelente oportunidade para a CIA distribuir o romance recém-impresso.
“Este livro tem grande valor de propagandanão apenas por sua mensagem intrínseca e natureza instigante, mas também pelas circunstâncias de sua publicação: temos a oportunidade de fazer os cidadãos soviéticos se perguntarem o que há de errado com seu governo, quando uma bela obra literária do homem reconhecido como o maior escritor russo vivo sequer está disponível em seu próprio país”, lia-se um memorando da CIA aos chefes da Divisão de Rússia Soviética da agência.
A edição de 1958 foi apenas a primeira. No ano seguinte, a CIA publicou uma edição em brochura de bolso atribuída a uma editora fictícia e que seria distribuída a estudantes soviéticos e da Europa Oriental no Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes pela Paz e pela Amizade, em 1959, que aconteceria em Viena.
O notável fato do envolvimento da CIA na primeira publicação em russo do romance de Pasternak é o mote do novo livro de Petra Couvée e Peter Finn, "The Zhivago Affair" (“O Caso Jivago”), publicado recentemente pela Pantheon.
“O pano de fundo do romance, desde suas origens até a controvérsia do Prêmio Nobel, é uma história que vale a pena ser contada”, diz Couvée, que é professora da Universidade Estatal de São Petersburgo.
Couvée descobriu o papel desempenhado pelo serviço de inteligência holandês (BVD) na década de 1990, quando um ex-oficial de inteligência disse a ela que o BVD ajudou a publicar o romance na Holanda em russo a pedido da CIA.
“Em meu primeiro artigo, reconstruí os eventos, com base em material holandês, belga, francês, russo, alemão e americano”, diz Couvée. Ele foi publicado em julho de 1998 em um jornal literário de Amsterdã com um “final um tanto não resolvido” e deu origem a um popular documentário de TV em janeiro de 1999.
Entre os espectadores, havia mais dois agentes aposentados do BVD envolvidos na operação Jivago. Um deles, Kees van den Heuvel, estava disposto a falar. “Visitei-o várias vezes”, diz Couvée. “Era um homem maravilhoso, jovem para os seus 80 anos, animado, carismático. Ele me disse que a CIA foi o principal iniciador e impulsionador do projeto Jivago. Esta foi a primeira evidência concreta do envolvimento da CIA no caso Jivago.”
Peter Finn, atualmente editor de Segurança Nacional e ex-chefe do escritório de Moscou no Washington Post, escreveu sobre essa história em 2007 e abordou a CIA pela primeira vez dois anos depois, pedindo para ver os "documentos de Jivago" da agência. A permissão não foi concedida. “A primeira resposta que recebi foi um claro não”, diz Finn. “Mas é claro que, como repórter, nunca aceito não como resposta.”
“Peter conversou com vários oficiais aposentados”, continua Couvée. “Eles trouxeram o assunto à atenção da Divisão de Registros Históricos e os historiadores da agência nessa seção ficaram interessados.” No final das contas, três anos após o pedido inicial de Finn, os autores receberam os documentos que esperavam. O envolvimento da CIA na edição de 1958 havia sido “especulado quase desde o nascimento do livro”, explicou Finn. Mas só agora a agência “finalmente reconhecia seu papel”.
Momentos deslumbrantes
Couvée e Finn descrevem a chegada dos documentos da CIA em agosto de 2012 como “o melhor momento”. “Eles foram enviados por correio normal para o endereço residencial de Peter na Virgínia”, diz Couvée. No mês seguinte, os autores se encontraram em Milão para entrevistar o filho de Giangiacomo Feltrinelli, o pioneiro editor italiano que produziu uma edição de 1957 de “Doutor Jivago” na Itália.
Couvée relembra: “Foi então que Peter me deu os documentos. Era um dia lindo, então sentei em um pequeno parque, o pacote de papeis na minha frente em uma mesa de piquenique... Isso me deslumbrava. Eu tinha iniciado minha pesquisa em 1997. Esse seria o grand finale?”
“Soube imediatamente que a CIA estava profundamente envolvida na impressão do primeiro ‘Doutor Jivago’ russo”, diz Couvée. Os documentos foram redigidos, mas os autores conseguiram “arrancar os nomes” e dar corpo aos personagens de arquivos e entrevistas. Outro "momento emocionante", de acordo com Finn, foi segurar o manuscrito real, contrabandeado para Feltrinelli: "As páginas tinham sido presas com barbante e estavam marcadas pela mão de Pasternak", lembra ele.
“The Zhivago Affair” se inicia em maio de 1956 com o contrabandista da obra, um jornalista italiano chamado Sergio D’Angelo, dirigindo-se a Pasternak em sua “datcha” (casa de campo) de Peredelkino para persuadi-lo a lhe dar o manuscrito de “Doutor Jivago”.
Os autores encontraram e entrevistaram D’Angelo, que escreveu seu próprio livro sobre “O Caso Pasternak”. “Mantivemos contato por e-mail desde então”, disse Couvée. “Ele era, como sempre é, incrivelmente charmoso e depois da entrevista nos levou a um restaurante local onde comemos porcini e javali.”
Mistérios ainda não resolvidos
Os encontros pessoais com sobreviventes do círculo de Pasternak dão ao livro uma sensação vívida. Embora os eventos que descrevem tenham ocorrido há mais de meio século, a ação é tão cheia de suspense quanto um thriller de espionagem. Devido à reorganização dentro da CIA, os documentos não foram divulgados ao público até o início de 2014, dando a Couvée e a Finn acesso exclusivo ao material enquanto trabalhavam no livro.
Os documentos também mostram o envolvimento das forças de segurança britânicas. Um oficial de inteligência não identificado conseguiu fotografar o manuscrito de “Doutor Jivago” e passá-lo para a CIA. Ainda há um ou dois mistérios a serem resolvidos, diz Finn: “Uma das questões pendentes é o nome da fonte original que passou o manuscrito à inteligência britânica.”
“Houve todo o tipo de descobertas, grandes e pequenas, ao longo do caminho, desde um fragmento em um livro de memórias ou um pedaço de correspondência a um memorando do cônsul em Munique ao Departamento de Estado sobre uma conversa com uma das pessoas envolvidas na tradução do Doutor Jivago”, diz Finn. Desde as primeiras descobertas de Couvée no final do século 20 até a publicação de 2014, os autores se deliciaram com a aventura literária. “Sempre foi uma jornada fascinante”, diz Finn.
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