Quem é Borgov, da nova série da Netflix ‘O Gambito da Rainha’?

Cultura
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Principal adversário da enxadrista Beth Harmon poderia ser baseado em pelo menos dois grandes mestres soviéticos. Ambos não deixaram pedra sobre pedra ao enfrentar seus oponentes.

“Tem um jogador que me assusta. O russo. Borgov”, diz Beth Harmon, a garota prodígio do xadrez na nova série da Netflix, ‘O Gambito da Rainha’. O drama sobre uma jovem órfã envolvida com drogas e álcool e talento improvável é construído em torno da história de sua carreira no xadrez nos anos 1960. Seus rivais são todos homens, sendo o principal deles um luminar soviético, o campeão mundial de xadrez Vassíli Borgov. Focado e de emoções contidas, ele prefere a escola clássica ao jogo intuitivo e, em geral, parece sólido e monolítico em comparação com os outros adversários de Beth. Não é à toa que é o melhor jogador do mundo – inicialmente.

O “Gambito da Rainha” é uma história ficcional e não há um único jogador de xadrez real entre os oponentes da enxadrista norte-americana. Ainda assim, os personagens têm semelhanças com pessoas da vida real. Incluindo Borgov, é claro. Quem seria a verdadeira figura por trás do fictício mestre soviético?

Borís Spasski

O candidato mais provável é Borís Spasski, décimo campeão mundial de xadrez e duas vezes campeão da URSS. Os entusiastas do xadrez imediatamente notaram as semelhanças nas características e táticas de Borgov. Spasski era famoso por sua técnica de finalização e confundia os oponentes com sua ‘variação fechada da defesa siciliana’ favorita (Beth é informada sobre essas ‘armadilhas’ enquanto se prepara para a partida com Borgov). Como Borgov, Spasski era famoso por sua rixa com um americano – na vida real era Bobby Fischer, o lendário “astro do rock” do xadrez. O encontro dos dois em 1972 foi apelidado de a “Partida do Século” da URSS-EUA.

Spasski começou a jogar xadrez aos cinco anos em um orfanato onde, com seus irmãos, viveu durante os anos de guerra. Depois do conflito, começou a frequentar o pavilhão de xadrez do parque. Em apenas um ano, alcançou o ranking Classe A, tornando-se o mais jovem detentor da classificação no país. “Um dos problemas do xadrez juvenil é a enorme pressão emocional. Eu costumava voltar para casa e literalmente desmaiar. Na manhã seguinte, sem falta, chegaria atrasado à escola.”

Aos 18 anos, Spasski se tornou o então o mais jovem grande mestre da história e em 1969, aos 32 anos, conquistou a coroa no Mundial, derrotando Tigran Petrosian. A essa altura, Spasski já havia jogado contra Fischer em várias ocasiões e o derrotado. Como na história da Netflix, ele levou seu adversário às lágrimas: “As partidas com Fischer eram tensas. Acho que Fischer até chorou depois de um jogo naquela época”.

Também há outra alusão: a tal “partida do século” entre Spasski e Fischer pelo título de campeão mundial em 1972 deveria ter terminado em empate. O Comitê Esportivo soviético insistiu nisso, lembrando a Spasski que a reputação do país estava em jogo e não apenas suas ambições pessoais. Mas Spasski correu riscos e cometeu um erro. Quando Fischer venceu, Spasski se juntou ao público para aplaudi-lo – exatamente como Borgov fez em sua última partida contra Beth Harmon.

Essa competição foi o auge da carreira de Spasski. Ele nunca mais conseguiu derrotar Fischer em torneios novamente. Recebeu o valor de 93.000 dólares pela partida, com o qual comprou um carro de luxo Volga M 21 e se mudou para a França – jamais foi perdoado em seu próprio país pela derrota, e as autoridades se recusavam a pagar por suas viagens para os torneios. “Chegavam convites para eu participar de torneios internacionais, mas o Comitê Esportivo decidiu se vingar de mim por ter perdido para Fischer”, conta o enxadrista. “Mudar de Moscou para Paris me permitiu participar de todos os torneios internacionais. Foi a única razão pela qual me mudei.”

A carreira de Spasski prosseguiu por mais 20 anos, após os quais retornou à Rússia e se dedicou a popularizar o xadrez no país. Ele agora tem 83 anos e mora em Moscou.

Anatóli Karpov

Karpov se assemelha um pouco menos a Borgov do que Spasski, mas, como diz o próprio prefácio do romance homônimo de Walter Tevis (do qual a série foi adaptada), o autor se inspirou em três mestres do xadrez: Spasski, Fischer e Karpov.

Karpov foi o melhor jogador de xadrez do mundo de todo uma década a partir de 1975. Também tinha a reputação de ser o principal enxadrista entre os comunistas. Seus confrontos com oponentes frequentemente terminavam em furor, com acusações de pressão psicológica e envolvimento de parapsicólogos nas partidas. Viktor Kortchnoi (quatro vezes campeão da URSS, que fugiu do país para a Suíça) escreveu em seu livro que costumava usar óculos escuros “para privar Karpov de sua atividade favorita: ficar à mesa olhando seu oponente diretamente nos olhos. Quando eu estava usando óculos, ele só conseguia ver seu próprio reflexo”.

Karpov começou a jogar aos quatro anos, ensinado por seu pai, um engenheiro militar. Em 1963, como um dos mais talentosos jovens jogadores de xadrez do país, foi admitido na Escola Botvinnik, cujo diretor era o patriarca da escola de xadrez soviética. Na época, Mikhail Botvinnik disse sobre o jovem Karpov: “Sinto muito, mas Tolia não vai chegar a lugar nenhum”.  Ainda bem que ele estava errado.

Mais tarde, Karpov se tornaria o 12º Campeão Mundial e receberia nove Oscars de xadrez durante a carreira (o prêmio era concedido ao jogador de maior sucesso nos 12 meses anteriores). Seu estilo de jogo pode ser descrito como um avanço calmo, sem pressa, porém sólido, sem ataques bruscos, não deixando oportunidade para contra-ataque. A encarnação da “escola soviética” que Beth Harmon tanto temia.

Após a famosa derrota de Spasski em 1972 por Bobby Fischer, Karpov se tornou a principal esperança do xadrez soviético. Ele não conseguiu, porém, enfrentar Fischer: o norte-americano se recusou a jogar (o que foi automaticamente considerado como derrota) depois que a Federação Internacional de Xadrez não cumpriu seus termos para o torneio. Karpov passou quase dois anos conduzindo negociações não oficiais para que a partida acontecesse, mas sem sorte. Karpov se tornou o único campeão mundial da história que não apenas recebeu o título sem participar de uma partida ou torneio do campeonato mundial, mas também não jogou uma única partida com o campeão anterior. Ao longo de sua trajetória, no entanto, o jogador demonstrou sua reivindicação legítima ao título em várias ocasiões de diversos torneios.

Além disso, durante todos esses anos, Karpov combinou a carreira no xadrez com outras atividades. Formou-se em economia dez anos depois, em 1978, já campeão mundial, e fez bom uso de sua formação acadêmica. Além de uma carreira política (deputado na URSS e da Duma pelo partido governante Rússia Unida, inclusive atualmente), também foi banqueiro e empresário, bem como presidente da empresa Berghoff-Rússia. Hoje, Karpov se ocupa principalmente da política e sobretudo de questões étnicas. Além de tudo isso, é considerado ainda um dos filatelistas mais famosos da Comunidade dos Estados Independentes – sua coleção de selos é estimada em pelo menos 13 milhões de euros.

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