“Os Beatles nos trouxeram a ideia de democracia. Para muitos de nós, este foi o primeiro buraco na Cortina de Ferro”, diz o roqueiro Sacha Lipnitski, mencionado no livro “How the Beatles Rocked the Kremlin”, de Leslie Woodhead.
Se você quisesse algo realmente difícil na União Soviética nos anos 1960 e 1970, então tentaria conseguir os vinis dos Beatles contrabandeados.
A intransponível Cortina de Ferro não conseguiu impedir os dedicados fãs da banda no bloco oriental, que contrabandearam seus discos aos montes e se tornaram hippies, dissidentes e músicos que definiram uma geração inteira.
O amor aos garotos de Liverpool foi uma das poucas coisas que abreviou as distâncias entre o Ocidente e os cidadãos soviéticos. Na época, o macartismo atacava a "ameaça" do comunismo e a "Nova Esquerda" estava ocupada digerindo Orwell e Soljenitsin e alternando sua opinião sobre a União Soviética, que então passava a já não ser bacana. No pensamento daqueles tempos, a Guerra Fria não era motivo de riso.
Os Beatles incorporavam a cultura popular na época, mas isso não os impedia de serem espertinhos. Sempre antagonistas, eles não senão investir na temática e tentar rasgar a nova narrativa ocidental. Coloque a faixa de abertura do White Album para tocar, "Back in the U.S.S.R".
Trolagem a la anos 1960
"Back in the U.S.S.R" é irônica do início ao fim. Antes mesmo entrar na política da Guerra Fria presente na música, seu som - o otimista riff de piano de blues de sete compassos é uma completa e óbvia paródia do som que é a cara dos Beach Boys (apesar de Mike Love ter estado no retiro dos Beatles em Rishikesh, na Índia, quando a música estava sendo composta, quando a aprovou).
Além disto, há o título, que conseguiu zombar tanto de "Back in the U.S.A.", de Chuck Berry, quanto da campanha do premiê britânico Harold Wilson, intitulada "I'm Backing Britain".
É claro que a trolagem da música é impressionante não apenas por ser multifacetada, mas por sua capacidade de provocar tanto tumulto com tão pouco. Frases como "as garotas da Ucrânia realmente me derrubam" e "deixe-me ouvir suas balalaicas tocando", longe de serem celebrações da cultura soviética, eram leves zombarias de sua desleixada aparência (digamos que as mulheres de Moscou e da Ucrânia não gozavam na década de 1960 da reputação que têm hoje).
Em seguida, há “Georgia's always on my my my my my my my my my mind”, que relembra o hit de 1930 de Hoagy Carmichael, “Georgia on My Mind”. A única diferença aqui, é claro, é que ela se refere ao norte do Cáucaso, e não ao Estado do sul dos EUA.
De certo modo, o que fez de “Back in the U.S.S.R.” uma sátira tinha menos a ver com o que a música dizia sobre a União Soviética do que com o fato de que ela simplesmente mencionava o país comunista.
Algo que mais parecia uma versão ridícula de “California Girls”, dos Beach Boys, a única coisa nela que se assemelhava a uma mensagem política era seu retrato de russos e americanos em paridade.
Como Paul McCartney explicou em sua biografia, o protagonista da música é "alguém que não tem muito, mas ainda assim é tão orgulhoso de si próprio quanto um norte-americano seria".
No meio da paranoia de 1968, porém, isto foi suficiente para um escândalo.
Mordendo a isca
As pessoas entenderam a piada em 1968, para ser justo. O “White Album”, que ganhou 19 discos de platina, mostrou o que os Beatles tinham de mais humano e brincalhão. No contexto mais amplo do LP, “Back in the U.S.S.R.” era apenas uma forma mais crua e contundente da audácia que estava presente ao longo do disco.
Mas teve quem não se impressionasse. A ultraconservadora John Birch Society, por exemplo, se ofendeu particularmente com a frase “You don’t know how lucky you are, boys” (“Vocês não sabem como são sortudos, garotos”) e acusou a banda de fomentar o comunismo e simpatizar com o inimigo.
Para além da afronta, surgiram também teorias da conspiração. O comentarista Gary Allen, direitista, traçou paralelos entre "Back in the U.S.S.R." e outro clássico do “White Album”, a canção "Revolution" para concluir que os Beatles eram, na verdade, stalinistas que "tinham tomado a linha de Moscou contra os trotskistas".
Também se diz que foi Allen quem começou o boato de que a banda fez uma viagem secreta à URSS e fez um show particular para o Comitê Central – teoria que se dissipou um pouco após o governo soviético classificar os Beatles como "o arroto da cultura ocidental".
Não foi surpresa que parte da “Nova Esquerda” também criticou música, lançada em meio à ocupação soviética da Tchecoslováquia, em 1968. Ian MacDonald resumiu este sentimento em seu livro de 1995, “Revolution in the Head”, em que relembrou a música como um “gracejo sem tato”.
Sem gestos vazios
Os Beatles não se incomodaram com as críticas sobre “Back in the U.S.S.R.”. McCartney disse à Playboy: “Eles gostam de nós por lá, mesmo que os chefes no Kremlin não o façam”.
Naturalmente, nenhuma música mostrou melhor a conexão proibida da banda com seus fãs soviéticos do que “Back in the U.S.S.R.”, interpretada ilicitamente (mas por demanda popular) por Elton John, nas Olimpíadas de 1980, em Moscou. Quando Paul McCartney finalmente recitou o hino da paz, na Rússia, em 2003, com Putin na primeira fileira, a multidão se derreteu.
Mas não foi surpresa. "Back in the U.S.S.R." é atemporal, mas por motivos que vão além do apelo global dos Beatles. Em um mundo tenso, cheio de acusações de espionagem, guerras por procuração e sapatadas, a música tinha teor político o suficiente para irritar os senhores do mundo, ao mesmo tempo em que soava como uma piada particular para todas as outras pessoas. A sátira musical não consegue ser mais pungente que isto!
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