Cena do filme "Uma mulher alta", de Kantemir Balagov
Kantemir Balagov/Non-stop Production, 2019Cozinha comunitária em uma kommunalka. O medo de ter a panela roubada. Camadas e camadas de pintura que ganham nova tinta fresca. Em “Uma mulher alta” é possível sentir até o cheiro da tinta verde e grossa que escorre pela parede do quarto – que, à primeira vista, parece esmalte, mas, ao vivo, exala um odor terrível, completamente diverso. É o cheiro do verão nos alojamentos universitários da Rússia. O cheiro do subbotnik. Uma velha reclama na cozinha compartilhada.
Tudo ali exalta a vida em um alojamento universitário russo. Mas, qual, o quê! É pior, é muito pior! É Dostoiévski, é alma russa, é “toská”, é desgraça, é dor pura. E é ainda mais impressionante que a enorme sensibilidade do filme “Uma Mulher Alta” (2019) tenha sido fruto da mente de um jovem diretor russo de apenas 28 anos à época da estreia, Kantemir Balagov.
Vencedor do prêmio de direção da mostra Um Certo Olhar, no Festival de Cannes de 2019, o filme é inspirado no livro “A guerra não tem rosto de mulher”, da vencedora do Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch, e trata das vidas de duas jovens que se reencontram em Leningrado no pós-guerra e tentam reconstruir suas vidas dilaceradas. Iya (Viktoria Mirochnichenko), a moça alta apelidada de “varapau”, sofreu uma concussão que a afetou profundamente e cuida de Pasha, filho de sua amiga Maria (Vasilisa Pereliguina), que virá encontrá-la posteriomente – e não menos afetada.
Iya é sobrevivente do cerco de Leningrado, 900 dias que constam dentre os mais duros da história - quando os habitantes da cidade, não bastasse as dificuldades do bloqueio, ainda tiveram depósitos de alimentos bombardeados pelos nazistas e se alimentavam de cascas de árvores, couro de sofá e, por vezes, carne humana, segundo relatos.
Já Maria, além das perdas pessoais que enfrentará, traz do passado e das ações que teve que empreender para sobreviver à guerra e à fome marcas que alterarão o curso de sua história para sempre. Mas, nesse percurso, há espaço para muitas desgraças ainda.
O longa recebeu 26 premiações, entre elas, nos festivais de Dublin, Asia Pacific, Montreal, Palm Springs, Torino e Estocolmo. Mas seu sucesso despertou reações diversas na Rússia.
Um portal, por exemplo, chama a atenção para o perigo do burburinho causado por "Uma mulher alta": "Este tipo de narrativa é frequentemente bem-recebido em festivais de cinema porque opera sobre uma imagem da Rússia que ajuda o Ocidente a se contrapor a ela na guerra ideológica. Uma apresentação da Rússia como país limado de qualquer ideia de humanismo, quase infernal, auxilia o Ocidente nessa luta.”
Mas não será o discernimento do espectador desenvolvido o suficiente para ver,para além de um sistema de governo, os horrores da guerra? E, pior, da guerra in loco, e não aquela à qual se enviam contingentes e armamentos – hoje, sobretudo drones e bombas aéreas. Quem será, porém, o Ocidente para falar em discernimento com suas últimas eleições...
Não, pensando melhor, “Uma mulher alta”, não é Dostoiévski, alma russa e toská. O que este filme é, sem dúvida, é a dor da realidade de quem viveu a guerra in loco.
LEIA TAMBÉM: Quantos Oscars a Rússia já ganhou?
Autorizamos a reprodução de todos os nossos textos sob a condição de que se publique juntamente o link ativo para o original do Russia Beyond.
Assine
a nossa newsletter!
Receba em seu e-mail as principais notícias da Rússia na newsletter: