Os 150 anos de Zinaída Guíppius, a poetisa que se firmou como a primeira feminista da Rússia

Cultura
SAVANNAH WHALEY
O legado radical de Zinaída no século 19 foi ofuscado pelos poetas russos mais famosos da chamada Era de Prata, como Aleksandr Blok e Anna Akhmátova. O Russia Beyond analisa a vida e a obra dessa escritora – e mulher – ferozmente independente, cujo nascimento completa 150 anos nesta quarta.

Zinaída Guíppius foi uma eminente poeta, escritora e crítica de prosa na Rússia. Sua influência poética e cultural andava de mãos dadas com a recusa em obedecer às noções prescritas de feminilidade. Admirada por escritoras da estirpe de Virginia Woolf e Gertrude Stein, foi figura central na elite cultural da época, apesar do comportamento subversivo. Hoje, porém, foi praticamente esquecida no Ocidente.

Inovadora e influente

Nascida em Beliov, Tulá (180 km ao sul de Moscou), em 20 de novembro de 1869, Guíppius começou a escrever poesia desde a tenra idade. Mudou-se para São Petersburgo em 1889, depois de se casar com Dmítri Merejkóvski, que era também poeta, escritor e um crítico literário significativo. Os dois logo se tornaram figuras-chave da elite literária de São Petersburgo, realizando saraus ilustres e familiarizando-se com figuras importantes como Maksim Górki, Anton Tchékhov e Lev Tolstói.

Após a Revolução de 1917 e a subsequente guerra civil, Guíppius e Merejkóvski se uniram ao êxodo de escritores, filósofos e estadistas da Rússia que se mudaram para Paris em 1919. Lá realizaram saraus famosos aos domingos, nos quais Guíppius era uma líder autoritário, apresentando os temas para discutir e administrando polêmicas. Em 1927, organizou a primeira reunião do “Zelenia Lampa” – a Lâmpada Verde, um dos mais importantes e eruditos dos grupos literários de emigrantes daquele período.

Guíppius era uma poetisa inovadora firmemente ancorada no centro da primeira leva de escritores do simbolismo russo, e muitos poetas simbolistas subsequentes basearam-se em suas experiências com rima e métrica. Os escritores simbolistas viam a palavra escrita como um meio de apreender uma verdade infinita e transcendental, e Guíppius brincava com motivos e temas decadentes do sagrado e do profano.

A poetisa formulou a ideia de que “a arte deveria se materializar apenas no espiritual”, e sua espiritualidade – assim como muitos outros aspectos de sua vida – não era convencional, estando ligada a uma busca por liberdade espiritual. “Minha alma está nua, despojada até a mais pura nudez”, escreveu em seu poema “O anel de casamento”, de 1905. “Escapou, transcendeu todos os seus limites.”

Desafiando as regras de gênero

A poesia também era um espaço em que Guíppius podia escapar das expectativas de gênero. Costumava adotar um pseudônimo masculino e era criticada por usar terminações masculinas de verbos e pronomes pessoais. Em resposta, afirmou que queria “escrever poesia não apenas como mulher, mas como ser humano”. 

Guíppius tratava sua vida como arte, e a usava como outro meio de explorar sua filosofia criativa. Fora de seu círculo, tinha a reputação de ser uma “Madonna decadente”, comparada ao diabo. Não fazia nada para contradizer esses rótulos, associando-se à figura gótica da aranha e usando imagens decadentes em sua poesia:

A seda arde em chamas,

Então vira poça de sangue;

“Amor” é nossa palavra mesquinha

Para o que a linguagem de sangue não consegue nomear.

(“A costureira”, 1901)

O estilo pessoal de Guíppius era elaborado e subversivo. Às vezes, usava vestidos ostensivamente femininos, considerados “inapropriadas” por muitos ao redor, com uma imagem e atitude que parodiavam as concepções convencionais de feminilidade. Andrêi Beli, um dos mais importantes simbolistas russos, descreveu-a como “uma vespa do tamanho humano”, dizendo que “uma mecha de cabelos ruivos esticados... ocultava um rosto pequeno e torto... o charme de seu esqueleto ossudo e sem quadril lembravam um Satanás comunicador habilmente cativante”. 

Guíppius também costumava se vestir com roupas masculinas e carregar óculos tipo lorgnette de lente única, ou monóculo, para o horror de seus contemporâneos. Embora incomum, vestir-se com roupas do sexo oposto não era algo inédito no início do século 20, mas a presença de Guíppius como uma figura estilisticamente andrógina, porém essencialmente masculina, revela a complexidade de sua identidade autocriada. A figura do dândi, que ficou mais famosa na Europa com Oscar Wilde, era tipicamente um indivíduo decadente e autoconsciente, interessado em artifícios e sensações artísticas intensas, que cultivava um comportamento distante e desdenhoso.

Uma mulher ferozmente individual, Guíppius assumiu o compromisso de proteger e cultivar a cultura russa – tão distinta da soviética – e inspirou e ajudou seus contemporâneos tanto quanto os confundiu. As pessoas se esforçavam para compreender esse verdadeiro radicalismo, mas sua proeza poética e influência literária lhe davam a liberdade de desconsiderar normas sociais de modo tão flagrante. Em seu poema “Encantamento”, de 1905, ela clama: “Bata, coração, bata cada coração por vez! / Levanta-te, cada alma destemida!”. Mais de um século depois, esse grito de guerra ainda desafia os leitores a abraçar a individualidade e reconhecer a liberdade que pode advir de desafiar as normas esperadas da sociedade.

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