No tradicional mundo acadêmico russo, a adição do sufixo “k” para formar o feminino das profissões é algo tratado com desdém. Por exemplo, prefere-se não usar o termo “ávtorka” (“autora”), empregando-se, assim, tanto para homens, como para mulheres “ávtor” (“autor”).
O mesmo vale para “dóktorka” (“médica”) e assim por diante. Mas muitas feministas russas acreditam que o sufixo não só é inofensivo, como também deveria entrar para o léxico e parar de sofrer preconceito: só assim, quem sabe, as russas deixem de ter vergonha de seu sexo.
Flexão de gênero nos nomes de bebidas russas: “espressa”, “amerikanka”, “latessa” etc.
Anna SorôkinaNeste ano, as defensoras da teoria conseguiram iniciar uma grande discussão sobre o tema do sufixo “k”. Não só as “ávtorka”, como também as “redáktorka” e as “bloguerka” (“editoras” e “blogueiras”) movimentaram a blogosfera e transformaram o que tradicionalmente era assunto de linguistas em uma ferramenta de luta pelos direitos das mulheres.
Agora, o termo “ávtorka” é usado em revistas importantes como “Afisha” e “Wonderzine” e também em alguns livros.
A flexão das profissões para o gênero feminino
Segundo as defensoras da flexão, palavras russas como “vrátch” (outro sinônimo de “médico”), “instrúktor” (“instrutor”) e outras não podem ser usadas sem um sufixo especial quando se trata de mulheres exercendo essas profissões, porque, caso contrário, a pessoa sobre a qual se fala não é clara.
Mas, ao mesmo tempo, os sufixos antigos não ajudam. Isto porque o sufixo “ch” (ш) traz consigo o significado de “pertencimento ao marido” e à profissão dele.
“Por isto, “dóktorcha” é tradicionalmente a “mulher do médico”, assim como “generalcha” é a “mulher do general”; enquanto “studentka” [“estudante” no feminino] e “sportsmenka” [“esportista” no feminino] indicam a atividade de uma mulher como uma unidade independente. É por isso que as feministas dizem ‘bloguerka’ e ‘redáktorka’”, explica a ativista Ássia Lunegova.
Na verdade, porém, a linguística é bastante elástica quanto ao “k” e ao “ch”. No passado, por exemplo, a palavra “soldatka” significava não uma posição de ação da mulher, mas passiva: era a “mulher do soldado”. E, hoje, “dóktorcha” é usado de modo depreciativo e pejorativo.
Contos de fadas feministas
Daria Apakhontchitch, renomada feminista e pintora de São Petersburgo na atualidade faz parte do grupo que está preparando o primeiro livro de contos de fadas para meninas. Nele não haverá “objetificação sexual” e os textos serão quase todos escritos pelas “ávtorka” (“autoras”).
Daria, que é filóloga, admite que inicialmente não se sentia na mesma página que a nova geração de feministas, já que a carreira acadêmica não envolve o uso de profissões femininas.
“Em um artigo acadêmico russo, não se pode sequer usar palavras como ‘tchitátelnitsa’ (“leitora”), embora elas já sejam parte do vocabulário russo há décadas. Um termo como ‘ávtorka’ não posso sequer mencionar, já que soa como neologismo ligado a determinada subcultura. Quando comecei a refletir sobre isso e me interessei mais por teorias de gênero, percebi que isso é só um estereótipo que se elaborou na cultura. Estamos simplesmente acostumadas a pensar que o feminino é alguma coisa de terceira categoria, de qualidade inferior”, diz Daria.
“Gosto dos termos que feminilizam os nomes das profissões, acho que eles evidenciam a presença das mulheres”, diz.
Ela afirma ainda que gostaria de ver sua profissão grafada no feminino no diploma. “Hoje, essas palavras parecem artificiais, mas é só um efeito temporário. Se até nós, mulheres, nos envergonharmos do nosso gênero feminino, o que podemos esperar dos outros?”, diz.
Daria enfatiza que só agora a discussão linguística está se tornando uma questão das massas, de maneira sem precedentes na história russa.
E por isso, segundo ela, o “feminitivo”, como são chamados em russo de termos que feminilizam os nomes das profissões, tem boas chances de se tornar progressivamente o padrão linguístico.
A língua, hoje, graças principalmente à internet, se transforma muito rapidamente e já não falamos e escrevemos como o fazíamos há apenas cinco anos.
“Venho ensinando o russo a refugiados há um ano. Tenho uma abordagem clássica do ensino, mas, aos que atingem determinado nível linguístico, falo sobre os termos femininos e a luta das mulheres por seus direitos. Qual forma eles usarão, são eles que decidem”, diz Daria.
Revolução no país, revolução na língua
Mas nem todas as feministas russas sentem ser prejudicadas pela falta do sufixo “k”. Muitos acreditam que a Rússia foi um dos primeiros países do mundo a dar às mulheres a igualdade de direitos com os dos homens.
Já em março de 1917, após a Revolução de Fevereiro e antes da de outubro, foi emitido um decreto sobre o sufrágio universal masculino e feminino. A Rússia foi o segundo país a dar às mulheres o direito de votar: o primeiro foi a Nova Zelândia, em 1893 (no Brasil, o voto feminino foi conquistado em 1932 e incorporado à Constituição de 1934 como facultativo; foi só o Código Eleitoral de 1965 que equiparou o voto feminino ao dos homens).
Depois, a Constituição de 1918 russa deu às mulheres o direito de manter seu sobrenome de solteira após o casamento, legalizou o aborto e simplificou os procedimentos de divórcio.
Quando as mulheres começaram a lutar ativamente por seus direitos, buscaram marcar presença em diversas esferas. E, assim, surgiu a “lektrísa” (mulher “palestrante”), a “kursístka” (“estudante do ensino médio” no feminino), a “telegrafístka” (“telegrafista”).
Mas, ao mesmo tempo, se opôs a esta tendência a “literária”, contra flexionar nomes masculinos para o feminino.
Nesta via, podemos lembrar de Anna Akhmátova e Marina Tsvetáeva, que se opunham resolutamente a serem chamadas de “poetessa” (“poetisa”). Elas se consideravam “poetas”, dando a entender que sua arte não era versos de poesia romântica, mas literatura séria. Ou seja, neste sentido, as próprias tinham uma elevada carga de preconceito contra a mulher nessa profissão.
Na década de 1920, quando as mulheres entraram ativamente no mercado do trabalho, uma verdadeira revolução começou na língua. Como, historicamente, as palavras que indicavam profissões na língua russa eram do gênero masculino, à exceção das tradicionalmente “femininas” como “chveia” (“costureira”) ou “krujevnitsa” (“rendeira”), as novas palavras eram formadas usando sufixos.
Assim, surgiu a “sanitarka” (“funcionária hospitalar”), “komsomólka” (“membra do Komsomol, a Juventude Comunista), a “guimnástka’ (“ginasta” no feminino), “bilietiôrcha” (“vendedora de bilhetes aéreos ou ingressos de teatro ou cinema”).
Ao mesmo tempo, entretanto, alguns termos pré-revolucionários como “arkhitektrisa” (“arquiteta”) ou “aviatrisa” (“pilota”) caíram em desuso.
A partir do pós-guerra até hoje, tornou-se costumeiro dar sinais do gênero das profissões não flexionando os nomes, mas com as palavras que estão próximas a eles na sentença ou adjetivos (que são flexionados no masculino ou no feminino) ou, ainda, verbos (que, no passado, são flexionados de acordo com o gênero também).
Assim, “proféssor skazál” é “o professor [universitário] disse”, enquanto “proféssor skazála” significa “a professora [universitária] disse”.
Aliás, em muitos países europeus que garantiram às mulheres direitos iguais aos dos homens depois da Rússia, mas passaram pela feminização de nomes relacionados a profissões, o processo hoje é na via contrária: busca-se por nomes que excluam ambos os gêneros.
Em inglês, por exemplo, na atualidade se tenta falar não sobre o “empresário” (businessman) ou a “empresária” (businesswoman), mas sobre “pessoa empresarial” (businessperson).
Série B das profissões?
Algumas mulheres realmente acreditam que a falta de nomes de profissões no feminino não prejudicam as mulheres na sociedade, mas também as isola em um gueto, relegando-as a um nível inferior.
“Qualquer termo relacionado ao gênero sempre foi interpretado por nós como um sinal de qualidade inferior na profissão”, diz Natália Lonikina, doutora em Filologia e professora do Departamento de Estilística da Faculdade de Jornalismo da Universidade Estatal de Moscou.
“Em russo, não temos um sufixo neutro, que indique simplesmente o gênero sem trazer outras nuances de significado. Os sufixos ‘-ikha’ e ‘-ka’ são diminutivos e até mesmo depreciativos e humilhantes. Assim, enquanto ‘vrátch’ é o médico, ‘vrátchikha’ não é uma ‘médica’, mas, no senso comum, uma ‘garota que trabalha na policlínica e não serve para nada’. Na minha opinião, as mulheres, usando esses sufixos, desqualificam seu profissionalismo”, diz Lonikina.
Mesmo os nomes femininos padronizados no uso coloquial russo vêm escritos no masculino em documentos oficiais.
“Se analisarmos diversos atos, contratos, certificados, sempre se fala de ‘utchítel’ (‘professor escolar’) e nunca de ‘utchítelnitsa’, ‘máster’ (‘artesão’, ‘trabalhador qualificado’) e não ‘másteritsa’ e assim por diante”, ressalta Natália.
“Depois da Segunda Guerra Mundial, as mulheres tiveram que assumir um grande número de funções tradicionalmente masculinas, por isso nossas mulheres não têm nada a provar hoje, especialmente se a competição for linguística. Nossa mulher provavelmente gostaria de ser libertada de alguns de seus deveres, de ser ajudada. Todas essas novas palavras como ‘koordinatorka’ (‘coordenadora’) ou ‘bloguerka’ (‘blogueira’) são imposições artificiais. E, com idiomas, as coisas não funcionam assim”.
As razões dos céticos
“Na nossa universidade, homens e mulheres são chamados de ‘zavêduiuschi káfedroi’ (“titular da cátedra’)”, diz Irina Dergatcheva, professora de cultura da língua na faculdade de Linguística do Instituto de Cultura Estatal de Moscou.
Para defender seu ponto de vista, ela usa como exemplo uma das maiores feministas do mundo, a russa Aleksandra Kollontai (1872-1952).
“Uma das pessoas que mais lutou pelos direitos das mulheres, ela foi diplomata soviética de longa data em vários países, e não se autointitulava ‘poslíkha’ (‘embaixatriz’), mas ‘possôl’ (‘embaixador’), apesar de o feminino não conter nenhuma carga ofensiva”, diz.
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