Em “O rumor do tempo”, recém-lançado pela editora 34, Ossip Emílievitch Mandelstam (1891-1938) constrói uma coletânea de 14 ensaios curtos com memórias de infância entrelaçadas a temas diversos, desde as relações com as próprias origens e tradições literárias até o “mito de São Petersburgo” - noção que determina uma peculiaridade da cultura de São Petersburgo -, passando pelo clima de inquietação dos anos pré-revolucionários. Aqui, falamos do final do século 19 e da primeira revolução russa, a que conta para a obra, ocorrida em 1905 - nas palavras do próprio autor, “o mais inquietante dos anos”.
Mandelstam começou a trabalhar em “O rumor do tempo” – que, no tomo vertido por Paulo Bezerra, vem junto à coletânea “Viagem à Armênia” - no segundo semestre de 1923, em Gaspra, na Crimeia, e deu continuidade à obra até meados do ano seguinte em Leningrado (hoje, São Petersburgo) e na cidade de Aprelevka, próxima a Moscou.
O livro foi encomendado por Issáia Lejnióv, editor do jornal “Rossia”, mas foi posteriormente rejeitado por ele. Segundo a mulher de Mandelstam, Nadêjda, isto teria acontecido porque Lejnióv “esperava uma narrativa sobre outra infância, a sua própria ou a de Chagal, e por isto a história de um menino de Petersburgo lhe pareceu insossa”.
Memória sem autor
Apesar de os textos se tratarem claramente de memórias, o que não se vê ali é Mandelstam. “Não quero falar de mim, mas seguir de perto o século, o rumor e a germinação do tempo”, escreve.
O centro de suas atenções se volta ao mundo que o rodeia e a sua formação, à família, à escola, aos colegas, à comunidade judaica que a família frequentava – apesar das raras, ou, mais precisamente, duas visitas do menino à sinagoga -, às viagens à Finlândia e a Riga, aos acontecimentos políticos que se sucederam entre as décadas de 1890 e 1900 e, claro, à literatura.
Mesmo assim, é possível entrever o menino Mandelstam por seu meio. A ideia de raznotchínets, por exemplo, o membro da classe intelectual desprovido de origem nobre do século 19, como se autodenomina o escritor, perpassa todo “O Rumor do tempo”. “Minha memória não é amorosa mas hostil, e não trabalha a reprodução, mas o descarte do passado. Um raznotchínets não precisa de memória, basta-lhe falar dos livros que leu e sua biografia está pronta”, escreve.
Há muito mais ali sobre a formação ideológica do autor: sua aproximação do movimento de "populismo russo" narodnitchestvo, a admiração do programa de Erfurt e o flerte com o SR, ou seja, o partido socialista revolucionário. Como bem lembra Bezerra no posfácio, Mandelstam chegou a flertar com as táticas terroristas do partido, e foi crucial que seus pais percebessem a movimentação a tempo de enviá-lo a Paris, onde aprimorou a formação literária e se afastou de um destino ainda mais arriscado.
Filho de pai judeu-curlandês e mãe também judia-russa, apreciadora da intelectualidade, ele pinta um cenário no qual era estrangeiro em todos os sentidos, criando ainda a noção de um “caos judaico” – até mesmo em termos de calendário -, condição que “não era pátria, não era casa nem lar”.
Nascido na Polônia, Mandelstam foi exposto a uma verdadeira Babel no ambiente familiar, rodeado de volumes do pai, em alemão, de Schiller, Goethe e Körner, além de ingleses de Shakespeare e de russos de Púchkin, Liérmontov, Turguêniev, Dostoiévski e Tolstói, entre outros. Mas sua parcialidade é patente quando ele descreve a mãe como tendo a fala “nítida e sonora, sem qualquer mistura estrangeira” e o pai como não tendo “nenhuma língua, apenas um palavreado embrulhado e uma aglossia”.
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E se a religião não lhe trazia conforto ou um senso de comunidade, mas apenas um sentimento lúgubre ao qual ele dedica longa descrição, ele deixa claro que suas inegáveis origens tampouco lhe eram cômodas em uma Rússia de pogroms em que judeus nascidos na Zona de Assentamento Judaico não tinham permissão para morar fora dela – Mandelstam, por acaso, tinha, pois seu pai era mestre de primeira guilda no ramo de luvas. Não é à toa, portanto, que o Caso Dreyfus surja logo nas primeiras linhas do tomo.
Antes de “O rumor do tempo”, Mandelstam nunca havia tocado com tanta profundidade no assunto da dicotomia entre o mundo cultural da Rússia Imperial e as tradições familiares, entre os rituais do judaísmo e os costumes da burguesia urbana – e tampouco volta a fazê-lo posteriormente.
O som da revolução
Mandelstam tece uma prosa permeada de poesia, e até um aparente insulto seu flui leve e rebuscado – um de seus personagens, por exemplo, tem “uma cândida Psiquê atingida por hemorroidas”.
A música percorre “O rumor do tempo” do início ao fim. Sobre a sala de concertos Pávlovsk, que abre o volume, por exemplo, ele escreve como “os apitos dos navios e dos trens se misturavam à cacofonia patriótica da ‘Abertura 1812’”. Tchaikóvski e Rubinstein inundam o ambiente e Nikolai Figner confere um rosto zombeteiro aos “anos moucos” da Rússia, que são complementados com descrições das revistas de variedades do país à época, uma delícia de imaginar para quem não teve a sorte de conferi-las em mãos.
Mas o ápice sonoro da obra se encontra, certamente, nos concertos de quaresma de Hofmann e Kubelik, em São Petersburgo, em 1903 e 1904. “Não se tratava de melomania, mas de uma grande profundidade, uma espécie de sede de agir, de surda intranquilidade pré-histórica que corroesse a Petersburgo de então – o ano de 1905 ainda não havia chegado...”.
As estratégias da propaganda imperial russa (tão presente quanto a soviética), também não deixam de passar pela música, e Mandelstam usa a metonímia para se referir ao Teatro Marínski como “Uma vida pelo tsar”, relembrando a ópera patriótica homônima de Mikhaíl Glinka que era exibida ali ad nauseam - como explica Paulo Bezerra em suas preciosas notas de rodapé.
O texto também é rico em referências ligadas a personalidades contemporâneas de Mandelstam. “Um de meus amigos, pessoa arrogante, dizia não sem fundamento: ‘Há pessoas-livro e pessoas-jornal’”, por exemplo, é uma clara referência a Nikolai Gumilióv.
Da mesma forma, um excerto sobre o professor da Escola Tênichev, Hippius, remete ao poema “Não como todos”, de Pasternak, de 1915: “Raiva literária! Não fosses tu, com o que eu estaria comendo o sal da terra?”. Além disso, partes do texto também ressoam a “Petersburgo”, de Andrêi Biéli.
Apesar de alguns personagens terem os nomes trocados – os “comerciantes Charikov”, de Víborg, são, na realidade, “Kuchakov”; a lista de formandos da Escola Tênichev de 1907 contêm nomes completamente diversos; e o “explicador da revolução” Serguêi Ivânitch é, na verdade, Serguêi Ivânovitch Beliávski, então futuro diretor do conservatório Pulkovski -, os relatos têm uma boa porção de exatidão, assim como a descrição maravilhada da Escola Tênichev, instituição privada fundada entre 1898 e 1900 e uma das mais progressistas da Rússia, com um estilo “inglês”.
Os alunos da Escola Tênichev não tinham notas, nas turmas mais novas quase não havia lição de casa e as relações entre professores e alunos era linear – algo bastante raro no cenário local. Ali se incentivava o espírito crítico e posições religiosas e nacionais não eram impostas. Daí o encanto de Mandelstam, não obstante seu companheiro de profissão Vladímir Nabôkov ter escrito sobre a escola, que também frequentou, com bastante comedimento.
“Viagem à Armênia”, que se segue no volume, é material para outra análise. “Do céu caíram três maçãs: a primeira para quem contou a história, a segunda para quem ouviu e a terceira para quem entendeu”, escreve ele em determinado ponto da coletânea armênia. Que a segunda caia então sobre os leitores.