Netflix tem curta russo entre animações de “Love, Death & Robots”

Cultura
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Um dos criadores da antologia de animações, russo Vitaliy Shushko fala sobre sua experiência e analisa ideia por trás de desenhos para adultos: “O mercado está saturado de animais falantes”.

Uma gangue de ladrões ciborgues persegue um comboio blindado por um deserto lilás. O plano foi pensado nos mínimos detalhes, e eles irão transportar um enorme arsenal de armas, mas correm o risco de serem descarrilados...por um roedorzinho.

Esta é a cena de abertura de “Ponto Cego”, um curta-metragem de animação independente feito pelos russos Vitaliy Shushko e Elena Volk. O filme faz parte da série de animações “Love, Death & Robots”, do diretor de “Deadpool”, Tim Miller. Já o produtor do projeto é David Fincher, diretor de “Clube da Luta”, entre outros.

Desde 15 de março, um conjunto de 18 curtas desenvolvidos por grandes estúdios e equipes de todo o mundo, foi lançado pela Netflix. O Russia Beyondconversou com Shushko, de 39 anos, cujo curta foi o primeiro a ser selecionado para o projeto.

Projeto para Netflix

Miller e Fincher tiveram a ideia de fazer uma série de animações para adultos há oito anos, em 2011, quando os dois trabalhavam no filme de Fincher “Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres”. O Blur Studio, de Miller, foi responsável pela sequência de abertura do longa.

“Acabou ficando bem sombria e estilosa, num gênero cyberpunk. Na época, Miller e Fincher perceberam que tinham muito em comum. Calhou que ambos gostavam de ‘Heavy Metal’, o filme de animação para adultos feito na década de 1980 (diretor era Gerald Potterton) cujo lema era ‘sexo e crime e rock’n’roll’. Só que, infelizmente, ninguém mais produz esses projetos porque ninguém mais está disposto a patrocinar animações para maiores de 18 anos”, explica Vitaliy Shushko.

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Após o sucesso de “Deadpool”, que foi promovido como um filme baseado em quadrinhos, porém para adultos, Miller percebeu que a hora de desengavetar o seu projeto havia chegado. A Netflix foi a primeira a responder.

“Fomos informados de que o público seria adulto, e os desenhos animados, classificados como restrito, portanto, nada de coelhinhos falantes, por favor. Tudo deve ser contundente, com todo sangue, violência e palavrões que tiver direito”, relembra Shushko. “Concordei. O mercado está saturado de animais falantes – Mickey Mouse é o rei. Mas hoje as pessoas precisam de algo mais duro. Não estou falando de pornografia, estou falando de histórias sérias para adultos.”

Miller e Fincher iniciaram, assim, uma minirrevolução - eles foram os primeiros a lançar animadores do Vimeo e de festivais em uma grande plataforma. 

“Ponto Cego”

A busca pelos autores de “Love, Death & Robots” começou em 2016, no mesmo ano em que Shushko e Volk haviam lançado “X Story”, seu primeiro filme de animação.

“Tim Miller viu o filme e escreveu para nós, convidando a gente a participar do projeto. Fomos os primeiros a serem convidados e, por sinal, a única equipe que não era de um estúdio. Todos os outros filmes foram submetidos pelos grandes estúdios, o Blur Studio, de Miller, tomou 40% do conteúdo. Nossa equipe principal tinha apenas seis pessoas. Até certo ponto, conseguimos um grande feito”, diz Shushko.

O Passion Animation Studio, que faz videoclipes para a banda Gorillaz, foi um dos grandes nomes que participaram do projeto.

“Ponto Cego” levou um ano e meio para ser concluído. O final do personagem X Story é sombrio e triste – os animadores russos pensavam que era isso que se esperava deles, mas acabaram percebendo que “não era bem assim”.

“Inicialmente, era uma ideia baseada no transumanismo – que ciborgues já foram humanos. Mas, no fim das contas, não se pode nem mais morrer de verdade no mundo dos ciborgues. Embora eu não ache que o público viaje tanto assistindo ao filme, é bem mais provável que estejam pensando: ‘Ok, é divertido”, diz Shushko.

Melhores episódios de “Love, Death & Robots”, segundo Shushko

  1. Zima Blue – dos animadores dos videoclipes de Gorillaz
  2. Metamorfos – sobre lobisomens marinhos patriotas maltratados por humanos
  3. Sugador de Almas - arqueólogos, vampiros e fobias
  4. A Testemunha – uma viagem surreal às favelas de Hong Kong

“Quando me correspondi com Robert Valley, diretor de Zima Blue, nos primórdios da produção, perguntei a ele sobre o título, porque soava como a palavra russa zima(inverno). Ele respondeu que tudo então fazia sentido, porque sua marca favorita de vodca se chamava Zima. Mas na animação não se trata de vodca”, conta Shushko. 

Trabalhando com o diretor de “Deadpool”

A maior parte do trabalho foi feita com o Blur Studio, de Miller. A Netflix é apenas detentora do conteúdo e patrocinadora interessada no resultado final.

“Miller nos encontrou após uma recomendação. É assim que as coisas geralmente acontecem no mundo da animação. Não havia concorrência aberta para ‘Love, Death & Robots’”, afirma o diretor de “Ponto Cego:.

Foi Gabriele Pennacchioli – o famoso animador de “Kung Fu Panda”, “Como treinar seu dragão” e outros sucessos, que trabalhou para a Dreamworks por 15 anos – que falou para o diretor de “Deadpool” sobre os animadores russos. Durante um longo período, Shushko e Pennacchioli deixaram comentários nos blogs um do outro; e o russo também postava esboços dos personagens em sua página.

Depois que o trabalho da antologia começou, Shushko e Miller começaram a se falar por telefone uma vez por semana, e assim foi durante um ano e meio.

“Eles sempre nos perguntavam no que estávamos trabalhando naquele momento; algumas ideias foram criticadas porque Tim Miller tinha uma melhor compreensão de como nosso episódio se encaixaria no contexto de toda a antologia, de onde era preciso mais dinamismo, ou do que estava deixando monótono. Em geral, o roteiro é um organismo vivo do começo ao fim do projeto. A qualquer momento pode-se encontrar uma cena extra que mudará o resultado como um todo”, diz o russo.

“A propósito, a Netflix teve uma atitude plausível – gostaram de quase tudo e fizeram poucos comentários. Usei o dinheiro pago para reformar meu apartamento. E, em geral, acho que dá para sobreviver por um ano com a quantia”, acrescenta Shushko.

Grandes estúdios ou projetos pessoais?

Shushko vive atualmente em São Petersburgo, onde se formou na Academia Estadual de Arte e Design Stieglitz, antes de ir para a faculdade em Rostov-no-Don.

“Eu vivi e estudei em lugares que pareciam bem distantes do universo da animação. Era a década de 1990, ou seja, não havia oportunidades. Mas a internet, fóruns e blogs chegaram à Rússia e foi assim que tudo começou”, lembra.

A ideia de seu primeiro filme veio em 2013. E então Pennacchioli – sim, o mesmo – sugeriu que ele enviasse seu portfólio para a DreamWorks. Shushko teve que esperar um ano para receber uma resposta. Durante esse tempo, Shushko deu início a um projeto conjunto com amigos, fazendo quadrinhos em movimento para iPad (uma versão moderna e animada dos gibis), no qual era o artista principal.

“Quando a oferta da DreamWorks chegou, já tínhamos feito quatro partes do projeto, e eu estava realmente curtindo. Foi uma escolha difícil. Mas tomei minha decisão: não sei o que me espera na DreamWorks, mas tenho que terminar o que eu comecei.”

Logo depois, um dos departamentos do estúdio de animação em Los Angeles foi dispensado (o mesmo para o qual Shushko foi convidado para trabalhar) depois do fracasso de “Mr. Peabody e Sherman” nas bilheterias. Em outras palavras, sua intuição não o decepcionou: “E onde eu estaria agora se tivesse concordado? Teria acabado sem a DreamWorks, sem os quadrinhos ou amigos, sem Elena Volk, que foi nossa principal animadora em ‘Ponto Cego’. Não posso ficar sem ela. E ela também tinha trabalhado por um ano para um grande estúdio, a Disney, fazendo Moana.”

Segundo Vitaliy, é improvável que concorde em trabalhar para um grande estúdio agora. “Entre ser uma engrenagem em uma empresa ou fazer seus próprios projetos – a escolha é óbvia. E também posso ver que os animadores russos estão prestes a criar projetos incríveis. Atualmente a Rússia não tem projetos assim, mas tem pessoas talentosas. E acredito que em breve aparecerá algo de que todos nos orgulharemos.”