A arte surrealista censurada de um escritor soviético proeminente

Grande parte do trabalho de Platônov pode ser visto como uma tentativa de devolver as palavras àqueles que foram forçados a se calar.

Grande parte do trabalho de Platônov pode ser visto como uma tentativa de devolver as palavras àqueles que foram forçados a se calar.

Sputnik
Brasil ganha duas traduções de Andrêi Platônov em 2019: “Chevengur” deve sair pela Ars e Vita, e “A escavação”, pela editora 34. A partir de 2020, editora 34 tem planos de lançar ainda 'Djan' e um volume de contos contendo o badalado 'O retorno'.

Como na letra de "Tiro ao Álvaro", de Adoniran Barbosa, marcada pelo mais triste dos censores como "falta de gosto", o escritor Andrêi Platônov também não caiu no gosto dos burocratas soviéticos. A diferença, porém, foi que sua obra recebeu do próprio Stálin uma anotação reprovadora. O “vójd” (do russo, “líder”) escreveu no pé de uma de suas histórias surreais “escória” e disse ao editor para “lhe dar uma boa cintada”.

Censurado e oprimido durante a vida, Platônov, que nasceu ainda no Império Russo, 1899, é hoje visto como ápice da criatividade na literatura soviética.

Mas alguns fãs de sua obras iriam além nos elogios. Na introdução da versão inglesa da coletânea de contos “Djan” (que saiu em Portugal como “Djan ou a Alma” pela editora Antígona e deve sair a partir de 2020 pela brasileira 34), o tradutor Robert Chandler disse: “Todos os russos consideram Púchkin seu maior poeta. Com o tempo, acredito, ficará igualmente claro que Platônov é seu maior prosador”.

O volume tem um dos contos favoritos de Chandler, "The Return" (em tradução livre, “O retorno”, que deve sair em um novo volume de contos da editora brasileira 34 a partir de 2020), que conta a história da volta de um capitão do exército a sua família no final da Segunda Guerra Mundial de maneira espirituosa, delicada e inteligente.

“Ela é cheia de detalhes vívidos, mas tem relevância universal. Todos os que, em momentos de impaciências, tiveram o ímpeto de esmagar sua vida imperfeita e correr atrás de alguma ilusão de perfeição podem aprender algo com este conto”, explica Chandler.

Platônov sempre foi amplamente admirado por outros escritores, entre eles Pasternák e Bulgákov. O poeta Joseph Brodsky dizia que ele era equiparável a Joyce e Kafka. O historiador Orlando Figes considera a descoberta de manuscritos inéditos de Platônov como “o mais precioso dividendo [literário] do colapso do sistema soviético”.

Jovem da classe trabalhadora de Vorônej, Platônov trabalhou na estrada de ferro quando ainda era um adolescente, lutou com o Exército Vermelho antes dos vinte anos e morreu na pobreza e obscuridade aos 52 anos de idade.

Muitos de seus textos só foram publicados postumamente, como o inacabado “Moscou Feliz” (para uma tradução de Cássio de Oliveira deste conto, clique aqui), escrito durante a década de 1930. A história bizarra e hipnótica emergiu na Rússia finalmente em 1991, e saiu revisada em inglês na última década.

Em suas primeiras obras no início da década de 1920, Platônov sonhava com um futuro utópico no qual a eletricidade transformava a natureza humana. Ele trabalhava com entusiasmo em projetos de recuperação e melhoramento de terras (sob a curiosa profissão intitulada “meliorator”, em russo), escreveu romances e histórias ambíguas e desconcertantes, tornou-se repórter de guerra e editor de literatura infantil. Ele contraiu tuberculose do filho, que tinha retornado de um campo de prisioneiros.

Na introdução a três capítulos em inglês de “Chevengur” (1928), Chandler escreveu, em 1999, em “The Portable Platonov”: “Grande parte do trabalho de Platônov pode ser visto como uma tentativa de devolver as palavras àqueles que foram forçados a se calar”.

O surrealismo de Platônov, como explica Chandler, reflete o caos dos tempos. As tentativas - às vezes sombriamente cômicas - dos habitantes confusos de Chevengur de estabelecer o comunismo incluem uma crença messiânica de que a mudança política fará com que o céu "fique mais azul e transparente" ou que "Rosa Luxemburgo renascerá como um cidadão vivo".

“A escavação” (que saiu em português também pela Antígona, de Portugal) é o romance mais conhecido de Platônov. Escrito em 1929, ele continuou inédito na própria União Soviética até 1988. Ele conta, de forma sombria e satírica, a história de um grupo dos primeiros trabalhadores soviéticos tentando cavar as fundações de um grande edifício - que nunca será construído.

Em resenha do livro para o Times Literary Supplement, Geoffrey Hosking escreveu que o poder do livro está em revelar “a mistura estranha e atormentada de esperança e desespero que muitas pessoas comuns devem ter vivido durante a revolução de Stálin a partir das hierarquias”.

 “Certamente, não há outro escritor capaz de transmitir, ao mesmo tempo, a beleza e a esperança do sonho soviético e sua terrível realidade”, disse Chandler sobre a obra em entrevista à The New Yorker.

Por que as pessoas levam em tal alta conta o estilo de prosa de Platônov?

“Na superfície, Platônov é o menos 'literário' dos escritores. Sua linguagem pode parecer grosseira e elementar, até mesmo rasteira. Ao mesmo tempo, porém, essa linguagem é extraordinariamente sutil, repleta dos mais delicados jogos de palavras e alusões”.

As histórias de Platônov são construídas em diversos níveis, com a inclusão de metáforas políticas etc.

O crítico do The Guardian, Daniel Kalder, descreve Platônov como um comunista dedicado que ficou chocado com os excessos do stalinismo e – de maneira fora do comum - "tentou negociar um espaço dentro da cultura soviética onde ele pudesse escrever honestamente sobre o que estava acontecendo".

Chandler ressalta que Platônov conseguiu publicar ótimas histórias durante a vida, apesar de elas terem sido criticadas de maneira cruel, e influenciou diretamente escritores mais jovens, como Vassíli Grossman.

“A coragem e a tenacidade dele foram notáveis”, diz Chandler.

Uma tendência a tornar escândalos internacionais e seus envolvidos conhecidos no mundo ocidental, algo que Chandler descreve como “visão ocidental distorcida da literatura soviética”, começa agora a mudar. Escritores antes menos conhecidos, como Grossman ou Platônov, mesmo sem as grandes polêmicas que acompanharam Pasternák e Soljenítsin, começam a estar no foco da literatura soviética no exterior.

Escritores de uma geração que “compartilhava das esperanças da revolução”, que escreveram obras complicadas e desafiadoras “de dentro da experiência soviética” finalmente estão ganhando fama mundial. E no Brasil também, com os próximos lançamentos.

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