‘Os dias dos Turbin’, um guia musical para Bulgákov

Cultura
MARINA DARMAROS
Se você achou que nunca entenderia a Guerra Civil pós-Revolução Russa ou a música clássica e folclórica russo-ucraniana, peça do autor de ‘O mestre e Margarida’ recém-lançada pela editora Carambaia é sua chance de virar a mesa (dando umas boas risadas)!

Vertida diretamente do russo pelas mãos do tradutor premiado com o Jabuti Irineu Franco Perpétuo, “Os Dias dos Turbin” foi primeira a primeira peça de teatro escrita por Mikhaíl Bulgákov, adaptação de seu romance “A Guarda Branca”.

Aproveitando o forte mergulho musical que Bulgákov faz em “Os dias dos Turbin”, com suas diversas referências à música clássica e folclórica russo-ucraniana, o Russia Beyond preparou um “guia” musical para dar uma palhinha sobre a obra para quem ainda não a leu – e também pautar a trilha sonora de quem tem a sorte de estar com nova edição da Carambaia na mão (neste caso, preste atenção aos números das páginas, que marcamos para vocês em cada canção aqui incorporada).

p.28 Canção (Op. 131, 1907) de Mikhail Kárlovitch Steinberg (1867-?).

Nascido em Kíev, filho de um teólogo, Bulgákov formou-se em medicina em 1916, participando, assim como seus dois irmãos, Nikolai e Ivan, da guerra civil, no exército dos brancos contra os bolcheviques. Com a vitória dos últimos, o escritor quis emigrar, mas, com tifo, não pôde.

Ele acabou abandonando a carreira de médico, virou literato e deixou a Ucrânia, partindo para Moscou, em 1921. Em “Os Dias dos Turbin”, como em outros volumes seus, é fácil identificar as fontes de inspiração de Bulgákov para seus personagens: seus irmãos Varvara (1895–1956) e Nikolai (1898–1966, biólogo, que emigrou após a Guerra Civil) forneceram os protótipos de Elena e Nikolka, enquanto Aleksêi Turbin é seu alter ego.

As dificuldades que o texto apresenta para leigos nestes capítulos da história são sanadas pela imprescindível cronologia estabelecida no início do volume. E o gosto do autor pela música não passa despercebido: desde o primeiro parágrafo os personagens cantarolam música popular russa e ucraniana, outros, clássica. E o tradutor não poderia ter sido mais apropriado para verter a peça, já que Perpetuo é um dos principais críticos de música clássica da atualidade no Brasil.

“O Bulgákov adorava música, e tem um piano no apartamento dele em Moscou. ‘O Mestre e Margarida’ também é cheio de citações musicais. Ele adorava a ópera Fausto, de Gounod, que foi inspiração forte para o Mestre... Em resumo, ele era bem musical”, conta Perpétuo, que verteu ao português também este título.

O foco de “Os dias dos Turbin” está sobre a “intelliguêntsia” nobre, o “pathos” dos Turbin e a posição política do próprio Bulgákov, que era contra os bolcheviques, razão pela qual a peça foi altamente rechaçada. 

“A crítica quanto a Bulgakov se transformou muito rapidamente em perseguição, em terror moral, em xingamentos sujos: na imprensa chamavam Aleksêi Turbin de 'filho da puta', e o autor da peça era classificado como 'tendo uma doença canina'”, segundo a pesquisadora Olga Naumova.

Bulgákov também montou um enorme caderno com recortes  de artigos de jornais: 298 eram "injuriosos" e 3 "elogiosos". Formou-se, assim, a opinião definitiva da imprensa quanto ao escritor: um “estranho” e até “elemento prejudicial”.

E, desde o primeiro parágrafo a obra traz referências musicais: “Apartamento dos Turbin. Noite. Lareira acesa. Quando as cortinas se abrem, o relógio bate nove vezes, tocando suavemente o minueto de Boccherini. Aleksei está debruçado sobre papéis”.

A “Canção de Oleg,  o sábio”, por exemplo, permeia algumas vezes a obra (p. 57, 152). Não se sabe quando os versos do mais amado poeta da Rússia, Aleksandr Púchkin, passaram a ser cantados como música de soldados com alterações em seu conteúdo. O primeiro arranjo do compositor Aleksandr Muraviov foi publicado em partitura pela primeira vez em 1916, com base em melodia já existente.

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No livro, porém, o texto da música não é o de Púchkin. O refrão soa como inventa o coletivo ali reunido em uma festa. Na primeira ocasião, o cômico primo Larióssik, vindo de Jitomir para passar uns tempos na capital, sempre com seus comentários um pouco fora do lugar, propõe um brinde ao tsar. Mas a ideia não é aceita.

Em outro trecho, os personagens cantam uma tchastuchka (tipo de canção folclórica humorística russa  e ucraniana), “Iáblotchko” (do russo, “Maçãzinha”), bastante difundida, com diversas variantes de texto, entre as facções envolvidas na Guerra Civil russa e, posteriormente em outros contextos.

Mais tarde, a música ganhou letra nova pelo bardo Iúli Kim para a imperdível adaptação televisiva soviética de “Coração de cachorro” (1988), baseada em obra homônima também de Bulgákov.

A verdade é que para ter sua primeira encenação permitida, a peça “Os dias de Turbin” passou por três redações, acabando por cortar menções a bolcheviques e a Trótski - o qual abundava na primeira versão.

No intrincado emaranhado beligerante na Guerra Civil que se seguiu à Revolução Russa, a ação, na terceira e última redação da peça teve que se centrar nos brancos e nos nacionalistas ucranianos liderados por Semiôn Petliura para que ela fosse aprovada pelos censores.

Assim, o próprio Stálin passou a defendê-la: “[a peça] não é tão má, pois causa mais benefício do que dano. Não se se esqueça de que a principal impressão que essa peça deixa no espectador é favorável aos bolcheviques”.

Assim, nem 200 críticas negativas conseguiram impedir Bulgákov.

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