De um lado, os nobres pais conservadores vivendo sem esforços ao estilo que demanda a idade em propriedades luxuosas. De outro, filhos que buscam trabalho duro e não se apoiam na própria idade: “deixem que ela é que dependa de mim!”. Eis a realidade da Rússia do século 19, cheia de contradições, que Ivan Turguêniev descreve em seu romance “Pais e Filhos”.
Apesar de ser seu título mais conhecido, “Pais e filhos” não é, de jeito algum, o único livro de Turguêniev que vale a pena ler. Na década de 1860, seu autor já tinha ganhado a reputação de escritor com “E” maiúsculo: coletâneas de contos como “Memórias de um caçador” (1952), “Mumu” (1854), “Ássia” (1857) e outros textos já tinham ganhado fama, difundiram-se amplamente entre os leitores e eram aclamadas pela crítica.
Ivan Turguêniev
Getty ImagesMas foi “Pais e Filhos” (1862), que acabou por colocar o nome de Turguêniev no mesmo patamar de grandes escritores russos como Aleksandr Púchkin, Mikhaíl Lérmontov e Nikolai Gógol.
Isto porque Turguêniev percebeu que a cara da nobreza russa estava mudando rapidamente, e parece até que seu personagem previu a ascensão de movimento um movimento pró-social.
Uma das inovações de “Pais e Filhos” foi seu novo tipo de personagem: um niilista, ou seja, seguidor de uma ideologia russa que descrê de absolutamente tudo – ou, como descreveu o crítico Nikolai Strákhov ironaizando o ceticismo niilista, “o niilismo dificilmente é algo que exista, apesar de não haver nenhuma negação do fato de que os niilistas existam”.
A definição do niilismo encarnou justamente no protagonista de “Pais e Filhos”, Evguêni Bazárov - estudante de medicina que tem aborda tudo de forma pragmática.
O ator Aleksandr Ustiugov como Bazárov no filme em quatro partes "Pais e Filhos", dirigido por Avdótia Smirnova.
Alexander Ryumin/TASSNunca antes houve alguém como Bazárov na literatura russa: ele rejeitava todas as suposições comuns sobre política, valores familiares, hierarquia social, o Cristianismo da Igreja Ortodoxa Russa e quase todos os aspectos da vida do século 19. Ele chegou até mesmo a tentar refletir sobre o próprio conceito de amor, mas este acabou prevalecendo sobre ele.
No início de 1860, o movimento niilista russo estava crescendo, e a obra “Pais e Filhos”, de Turguêniev foi uma das que o impulsionou, juntamente com as obras de Nikolai Tchernichévski, Dmítri Pissarev e outros.
Em 1862, após a publicação do romance, Turguêniev chegou a uma São Petersburgo em chamas: diversos incêndios premeditados ocorriam na cidade, e historiadores consideram foram movimentos radicais que os provocaram. Turguêniev lembrou-se depois da primeira coisa que ouviu de um amigo: "Veja seus niilistas, eles estão incendiando Petersburgo!".
A questão do conflito de gerações
Ivan Turguêniev também foi o primeiro escritor russo a levantar tão abertamente o assunto de falta de harmonia entre diferentes gerações.
“Aristocracia, liberalismo, princípios… Apenas pense neste monte de palavras estrangeiras e inúteis! Para um russo, eles não servem para nada!”: é isto o que o jovem niilista Bazarov pensa sobre a geração mais velha e seu estilo de vida conservador.
Cena da série "Pais e filhos" (2008), dirigida por Avdotia Smirnova
Avdotya Smirnova/Рекун-Синема, 2008O título do romance, que em russo se pronuncia “Otsí i dêti” tornou-se imediatamente um bordão que ainda hoje é amplamente empregado.
E ele não trata apenas das tensões cotidianas comuns entre pais e filhos, mas também sobre os dois “setores” da intelliguêntsia russa do século 19: pais nobres e muito conservadores em roupas engomadas e filhos revolucionários que se recusam a viver como os pais ricos, que, segundo eles, nada sabem sobre o trabalho duro e defendem apenas princípios arcaicos.
Turguêniev basicamente captou o espírito turbulento de seu tempo, mas nem todo crítico concordou com seu feito. A maior parte ficou impressionada com a abordagem inovadora e o olhar sincero de “Pais e Filhos” sobre a vida moderna da Rússia no século 19. Mas houve muitos críticos que acusaram Ivan Turguêniev de difamar a geração mais jovem e louvar a antiga.
A recepção do romance foi tão controversa que, no final das contas, o próprio Turguêniev publicou uma resposta sua aos críticos. Seu maior objetivo era escrever sobre a realidade sem tomar o lado de ninguém.
Turguêniev achava que a recepção negativa tinha sido causada pelo fato de que o tipo construído com seu personagem principal, Bazárov, era algo completamente novo na literatura russa.
Cena da série "Pais e filhos" (2008), dirigida por Avdotia Smirnova
Avdotya Smirnova/Рекун-Синема, 2008O público esperava que o autor justificasse, de alguma maneira, a existência deste protagonista revolucionário ou o julgasse - e nada menos que isto. Mas Turguêniev rejeitou ambas as coisas: o escritor simplesmente retratou este niilista da forma mais realista e objetiva possível.
Reza a lenda que um conhecido de Turguêniev sugeriu que ele mudasse o título do romance para “Nem pais, nem filhos”, indo direto ao ponto, já que o autor não defende a causa de nenhuma das gerações, apenas mostrando as mudanças que surgiam na Rússia conservadora do século 19.
O niilismo se tornou uma tendência revolucionária que nem todo mundo na Rússia tsarista estava disposto a aceitar. Assim, Turguêniev retratou todos os ângulos possíveis de negação na pessoa de Evguêni Bazárov, que dizia: “Agimos em virtude daquilo que reconhecemos como benéfico. No presente, a negação é a coisa mais benéfica de todas - e negamos... Tudo”.
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