“As pessoas precisam de uma referência moral da época em que vivemos. É difícil encontrar isso, e nesse ponto Dovlátov ajuda muito... Dovlátov achou para si uma posição muito equilibrada: um observador um tanto cruel e, ao mesmo tempo, irônico e espirituoso. Como Tchékhov, ele tinha a capacidade magnífica de misturar o importantee o insignificante...”
Foi o renomado escritor russo Víktor Eroféiev quem o disse, e não eu. Falou numa entrevista, em 2015, durante a abertura do Festival Serguêi Dovlátov, em Pskóv. Ali, no noroeste da Rússia, fica o parque-museu Mikháilovskoie-Trigórskoie, dedicado ao poeta Aleksándr Púchkin, onde, em 1976, Serguêi Dovlátov passou uma temporada.
Atolado de problemas de toda ordem, ele resolveu mudar de ares, longe de Leningrado (atual São Petersburgo), e trabalhar como guia turístico. Esse episódio serviu de mote ao impagável “Parque Cultural” (em russo, “Zapoviédnik”), que minha amiga Yulia Mikaelyan traduziu para o português e publicou pela Kalinka, em 2016. Meu primeiro contato mais intenso com Seriôja, o diminutivo de Serguêi.
Dois anos depois, acompanho avidamente, como editora de seus livros, as notícias a respeito do filme de Aleksêi Guérman Jr., “Dovlátov”, que estreou agora em fevereiro no Festival de Berlim.
Fama póstuma?
O percurso de Serguêi não difere do de muitos artistas: um desconhecido em vida, uma personalidade em morte. Partiu da União Soviética em 1978. Antes fora expulso da União dos Jornalistas, detido, sem possibilidades de viver da escrita, seu único amor.
Rumou para a promissora América. Lá, saiu-se bem. Publicou até na “The New Yorker” — feito, até então, só conquistado entre os russos por Nabókov. Em Nova York, Dovlátov fez jornalismo e literatura, mesmo longe de seus leitores.
Ele nunca escreveu em inglês, diga-se de passagem. Morreu alguns anos depois, numa ambulância, prestes a completar 49 anos. O coração não aguentou. Agora é um mito na Rússia. E, como todo mito que se preze,virou filme.
Nem parece russo
As resenhas que saíram sobre o filme são diversas e curiosas. No que se refere ao diretor, ele foi considerado de felliniano a pretensioso (não vejo a hora de ver o filme!). Quanto à personagem do escritor, meu momento predileto é quando se surpreendem com a escolha do ator, o sérvio Milan Marić. Alto, moreno, mediterrâneo, um tipão “de notável semelhança com Marcello Mastroianni”.
Seriôja não tem culpa de ter nascido assim. Quase dois metros de altura — “costumam me confundir com o [arranha-céu] Flatiron Building” —, era “nosso árabe”, “nosso Omar Sharif”, como diziam os amigos. Tinha uma queda para a vodca e para mulheres. E vice-versa. Mas queria ser escritor, acima de tudo. Como nos bons tempos.
Muitos veículos nem mesmo se deram o trabalho de citar a biografia básica: Escritor e jornalista soviético nascido em Ufá (Basquíria), em 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, filho de uma atriz de origem armênia (que ganhava a vida como revisora) e de um diretor teatral de origem judia...
Dovlátov morou boa parte da vida em Leningrado, onde, tachado de dissidente, não conseguia publicar suas obras. Radicou-se nos EUA e lá conseguiu engatar doze livros, em prosa curta.
Entre eles, “A troca” (“Kompromiss”, 1981), “A zona” (1982), “Parque Cultural” (1983), “Os nossos” (“Náchi”, 1983), “O ofício” (“Remesló”, 1985), “A mala” (“Tchemodan”, 1986), quase sempre relacionados com suas desventuras pessoais, num estilo que mescla deliberadamente realidade e ficção. E há diferença?
Parece que Friedrich Gorenstein tinha razão em seu “Salmo”: “A cadência do século 20 tirou das pessoas um dos bens fundamentais da vida — a paciência. Os homens do século 20 são impacientes tanto em seu comportamento como em seu entendimento. Se não compreendem algo de imediato, simplesmente seguem adiante”.
Eu não me excluo. O tempo urge. O festival corre. Notícias precisam ser fabricadas. Agora elas se acham em toda parte, mas... quem raios é Aleksêi Guérman?
Observador implacável
Como se lê até na sinopse do filme, Dovlátov criticava a União Soviética — e não podia ser diferente. Parte de um grupo de escritores não oficiais de Leningrado que surgiu nos anos 1960, foi excluído do sistema. Quer dizer, sua escrita mais autoral.
Pois chegou a trabalhar em alguns jornais soviéticos, seguindo as regras do jogo (o jornalismo era seu ganha-pão). Viu amigos serem presos e perseguidos. E também deu azar.
Quase publicou um livro, “Cinco esquinas” (“Piat uglóv”, depois renomeado “Contos da Cidade”, “Gorodskie rasskázi”), em Tallin, na Estônia, onde morou por três anos, entre 1972 e 1975. Não fosse uma busca insana do KGB na casa de um conhecido... Os originais foram confiscados. O livro, às portas da gráfica, cancelado.
Mas Dovlátov também não poupou a América de seu olhar ferino. Foi o que descobri no “O ofício”, livro que traduzi agora com a Yulia, que, além de ter me levado ao universo do escritor, teve paciência com minhas obsessões. Pior que uma editora, só uma editora-tradutora.
Entre as pérolas de Dovlátov sobre os americanos: “Se eles se separam da mulher, vão até o advogado. (Em vez de desafogar a alma com os camaradas do trabalho.) Contam seus sonhos a psicanalistas. (Como se fosse difícil telefonar para um amigo na madrugada.)”. Aliás, as pérolas do narrador do “O Ofício”.
Praticamente todos os livros de Dovlátov são conduzidos por um narrador em primeira pessoa. Como se não bastasse, nessa novela em duas partes, em que são descritas as “peripécias de seus manuscritos”, ele ganha o nome do próprio autor.
Será que tudo na realidade se deu? Que importa?! Seriôja se coloca ao lado do leitor. Nem acima, nem abaixo. Sua invariável autoironia nos obriga a olharmos para nós mesmos, para nossas fragilidades. E a imagem que vemos diante do espelho pode não ser muito atraente...
Brodsky e cia.
Sobre o filme, eu soube mais. Ele se passa em 1971, seis dias da vida de Dovlátov. O entourage: a boemia leningradense. Joseph Brodsky, seu amigo, não podia faltar ao enredo.
Um dia, o “ruivo”, como o poeta era chamado, pontuou, certeiro: “Ler Dovlátov é algo leve. Ele como que não reivindica atenção, não insiste em suas conclusões ou observações sobre a natureza humana, não as impõe ao leitor. Eu devoro seus livros em três ou quatro horas de leitura ininterrupta: justamente porque é difícil escapar de seu tom despojado. Ao ler seus contos e novelas, invariavelmente nos sentimos gratos pela ausência de pretensão, pelo olhar ponderado sobre as coisas...”.
O trecho se encontra no ensaio “Sobre Seriôja Dovlátov”, escrito por Brodsky dois anos depois da morte do amigo, em 1992. Tocante de cabo a rabo, Brodsky mostrou que, nessa busca pela concisão, havia muito de poeta em Dovlátov. Um estilista de mão cheia.
Na realidade, Dovlátov tornou-se famoso ainda em vida. Pelo menos na colônia dos emigrados russos de Nova York, no bairro de Forest Hills. Por seus programas na rádio “Svoboda” (“Liberty Radio”) e por suas colunas no jornal russo “O novo americano” (“Nôvi Amerikánets”), que fundou em Nova York, em fevereiro de 1980, ao lado dos ex-jornalistas soviéticos Borís Métter, Aleksêi Orlóv e Evguêni Rúbin — fase hilariamente descrita na segunda parte do “O Ofício”, “O jornal invisível”.
Mas nada comparado à fama que seu espectro alcançou depois. Coisas da vida. E da morte. Que acontecem em todo lugar. Não apenas na União Soviética.
Daniela Mountian é tradutora e editora.
As opiniões expressas aqui são da autora e não refletem necessariamente as opiniões do Russia Beyond.
Quer saber mais sobre o filme, cujos direitos já foram negociados com Imovision no Brasil e Leopardo Filmes em Portugal? Então leia “4 razões para assistir a “Dovlatov”, novo filme sobre o escritor dissidente soviético”.