Por que a Rússia envia tão poucas mulheres ao espaço?

Gravação de programa de TV soviético com cosmonautas. Da esq. para dir.: Pável Popôvitch, Iúri Gagárin, Valentina Tereshkova, Valéri Bikôvski, Andrian Nikolaiev e Guerman Titov.

Gravação de programa de TV soviético com cosmonautas. Da esq. para dir.: Pável Popôvitch, Iúri Gagárin, Valentina Tereshkova, Valéri Bikôvski, Andrian Nikolaiev e Guerman Titov.

Iakov Khalip/Sputnik
Desde que se iniciaram os voos espaciais, apenas cinco russas deixaram a Terra, e ainda há boatos de que elas simplesmente não querem ser cosmonautas...

“Nossas pesquisas científicas nos últimos 50 anos mostram que não há diferenças fundamentais entre homens e mulheres [no espaço]”, diz Anatóli Grigoriev, diretor científico do Instituto de Problemas Médicos e Biológicos. Essa opinião é compartilhada por quase todos os países que têm seu próprio programa espacial.

No entanto, a paridade entre homens e mulheres em voos espaciais ainda está longe: em todo o mundo, no total, apenas 11% dos participantes de voos orbitais são mulheres. A grande maioria delas, 53, foram enviados ao espaço pelos Estados Unidos. A Rússia, por sua vez, enviou apenas cinco mulheres nos 61 anos de história dos voos espaciais tripulados. Hoje, há apenas uma mulher no corpo de cosmonautas ativo na Rússia, Anna Kíkina, que entrou para a agência russa em 2012.

Primeira, mas e o resto?

A primeira mulher enviada ao espaço na história era soviética. Em 1963, Valentina Tereshkova, de 25 anos, circunavegou a Terra 48 vezes sob a bandeira da URSS.

A cosmonauta Valentina Tereshkova.

As primeiras cosmonautas foram selecionadas não só com base em suas qualidades psicofísicas. Tereshkova era inferior a outras candidatas a voar para o espaço e foi considerada "a pior dentre as melhores".

Tereshkova tinha realizado apenas 90 saltos de paraquedas, enquanto outra candidata, Soloviova, por exemplo, era uma mestra do paraquedismo e tinha feito mais de 700 saltos. Além da formação, outras habilidades foram de grande importância no processo da escolha da cosmonauta, como biografia e filiação partidária, já que o lançamento de uma mulher ao espaço era uma ação sobretudo política.

Valentina Tereshkova foi a primeira mulher a voar ao espaço sozinha e continua a ostentar esse título até hoje. No entanto, seus erros e problemas de saúde durante o voo levaram à suspensão dos voos femininos ao espaço.

Depois dela, outra soviética foi ao espaço apenas em 1982. Treinada como pilota-instrutora, Svetlana Savítskaia, estabeleceu 3 recordes mundiais de paraquedismo estratosférico e 18 recordes de aviação a jato antes de entrar em órbita. Ela viajou ao espaço duas vezes e, em seu segundo voo, em julho de 1984, foi a primeira mulher do mundo a sair para o espaço aberto.

A cosmonauta Svetlana Savitskaia em espaço aberto.

Em seguida, a engenheira Elena Kondakova participou de duas missões espaciais na década de 1990 — uma delas, com duração de cinco meses. Nenhuma outra mulher esteve em órbita por tanto tempo desde então.

A engenheira de voo Elena Kondakova.

Dezessete anos depois, em 2014, a engenheira Elena Serova embarcou na Estação Espacial Internacional.

A cosmonauta Elena Serova com astronautas da Nasa.

A quinta mulher, e última até agora, foi a atriz Iúlia Peresild, de 37 anos. Ela não tinha qualquer relação com o espaço antes de seu voo, e teve que estudar equipamentos espaciais, melhorar seu preparo físico e passar por treinamento psicológico.

A atriz Peresild (centro) na estação espacial.

Preocupações?

Logo após o primeiro voo de Gagárin ao espaço, tanto os soviéticos quanto os especialistas da Nasa temiam problemas que pudessem surgir no espaço devido à fisiologia feminina. Os médicos temiam, por exemplo, que a menstruação no espaço pudesse fazer com que o sangue vazasse para a cavidade abdominal através das trompas de Falópio, em vez de sair do corpo.

Outra alegada preocupação era quanto aos efeitos da viagem sobre a função reprodutiva das mulheres. No entanto, após a primeira viagem, ficou claro que isso não influenciava a fertilidade feminina: Tereshkova deu à luz uma filha saudável um ano após o voo espacial e o mesmo aconteceu com Savitskaia mais tarde. As preocupações com a menstruação também eram infundadas. Tudo isso deu a cientistas a certeza de que as mulheres não diferem dos homens no espaço.

A primeira criança filha de um casal de cosmonautas (com a mãe, Tereshkova).

Segundo o pesquisador Anatóli Grigóriev, embora a União Soviética tivesse poucas mulheres cosmonautas, muitas foram treinadas e preparadas para voos espaciais. Valentin Gluchkó, engenheiro-geral da NPO Energia — empresa estatal fundada em 1946 e responsável pela construção de naves e componentes de estações espaciais —, tinha o intuito de desenvolver a cosmonáutica feminina. Entre seus planos estava até mesmo a formação de uma equipe espacial composta exclusivamente por mulheres.

Para fazer isso, no final da década de 1970, um esquadrão inteiro de cosmonautas mulheres passou por exames médicos no Instituto de Problemas Médicas e Biológicas. Doze mulheres foram autorizadas a continuar o treinamento especial e, em seguida, quatro delas foram escolhidas, todas médicas: uma gastroenterologista, uma médica de terapia intensiva, uma endocrinologista e uma especialista em regulação hormonal. O envio da tripulação feminina foi planejado então para meados da década de 1980.

Svetlana Savitskaia (centro) em treinamento.

"As moças, porém, não tiveram sorte. Houve problemas na estação orbital: Vladímir Vasiutin adoeceu, o voo feminino foi adiantado e, nos três ou quatro anos seguintes, o programa foi completamente fechado", explica Grigoriev.

Problemas com equipe e preconceitos

Apesar de tudo, até hoje há cosmonautas que explicam a ausência de mulheres no espaço pela “fisiologia feminina”. Atualmente, porém, essas declarações causam escândalos.

Foi esta, por exemplo, o caso da declaração do cosmonauta Serguêi Riazánski: "Os homens têm fisiologia primitiva, temos níveis hormonais estáveis. Ninguém vai ajustar lançamentos de foguetes, caminhadas espaciais ou emergências ao ciclo feminino."

A declaração foi massacrada por seus colegas, que ressaltaram que o “ciclo feminino” não impede a Nasa de realizar inúmeros lançamentos de astronautas mulheres.

A cosmonauta Elena Serova em treinamento.

“Do ponto de vista fisiológico, não há obstáculos para as mulheres voarem a o espaço”, diz o médico espacial e iniciador do projeto Mars-500, Mark Belakôvski. "Na minha opinião, há duas questões que impedem as mulheres russas de viajar à Estação Espacial Internacional: a mentalidade nacional e o julgamento subjetivo."

A “mentalidade nacional” é a opinião geral de que a cosmonáutica é algo para os homens. Segundo a cosmonauta Elena Serova, desde os tempos soviéticos, existe uma tradição de que existem certas “profissões masculinas”.

"Isso começou nos tempos da Segunda Guerra Mundial, depois da qual a população foi bastante reduzida e o governo não permitia que as mulheres exercessem determinadas ‘profissões masculinas’ para resguardar a saúde dessas mulheres. É um preconceito que, infelizmente, está enraizado na Rússia", diz Serova.

Membros da tripulação do veículo espacial tripulado Soyuz TMA-14M Aleksandr Samokutiaev e Elena Serova durante treinamento no Cosmódromo de Baikonur.

Além disso, de acordo com o especialista em cosmonáutica Vitáli Egorov, há outra razão que impede a mulheres de se tornarem cosmonautas.

“Na cosmonáutica russa não há uma divisão de normas para homens e mulheres. Todas as competições esportivas, incluindo as Olimpíadas, tem normas diferentes para homens e mulheres, mas isso não acontece com os cosmonautas. Mesmo que uma mulher seja saudável e tenha recebido preparação para a profissão, será mais difícil para ela cumprir as normas estabelecidas. Na Nasa, as normas para homens e mulheres também são as mesmas, mas mantidas para o nível feminino. O motivo é o conservadorismo da cosmonáutica russa.”

Participantes da da tripulação feminina da simulação de voo Luna-2015. Da esq. para dir.: Anna Kussmaul, Inna Nosikova, Polina Kuznetsova, Tatiana Chigueva, Daria Komissarova e Elena Luchitskaia.

Em 2019, a agência espacial russa Roscosmos anunciou uma nova campanha de recrutamento de cosmonautas e prometeu bucar "mais ativamente" candidatas do sexo feminino. "Esperamos que as jovens russas possam passar em todos os complicados testes e, assim, equilibrar a equipe, que se tornou muito masculina", anunciou na época o diretor-geral da Roscosmos, Dmítri Rogôzin.

Mas nem isso ajudou ajudou. Dos 2.200 candidatos, 64 chegaram à fase de seleção final. Desses 64, apenas nove eram mulheres. E nenhuma candidata foi aprovada no último teste físico.

LEIA TAMBÉM: Por que os astronautas da Nasa não seriam aprovados no processo de seleção soviético-russo?

Para ficar por dentro das últimas publicações, inscreva-se em nosso canal no Telegram

Autorizamos a reprodução de todos os nossos textos sob a condição de que se publique juntamente o link ativo para o original do Russia Beyond.

Leia mais

Este site utiliza cookies. Clique aqui para saber mais.

Aceitar cookies