O homem por trás do Cão de Pavlov

Retrato de Ivan Pavlov, por Mikhail Nésterov.

Retrato de Ivan Pavlov, por Mikhail Nésterov.

A. Sverdlov/Sputnik
Ivan Pavlov pode ser o cientista mais famoso da Rússia, mas, para a maioria dos estrangeiros, ele vive à sombra de seus famosos experimentos com cães. Afinal, quem foi Pavlov e quais foram suas contribuições para a história da ciência?

Fico sabendo que os moradores de Koltuchi, situada a apenas vinte quilômetros de São Petersburgo, mal sabem quem plantou as árvores no amado parque da cidade. Estou lá em um sábado, e muitos estão passeando com a família ou amigos. Minha guia, Irina Aktuganova, continua contanto que muitos também não saberiam que os edifícios de madeira espalhados pela vegetação fazem parte do patrimônio protegido pela Unesco, um extenso monumento ao cientista e primeiro Prêmio Nobel russo: Ivan Petrovitch Pavlov.

Um homem à sombra de cães

Quando os estrangeiros pensam em Ivan Pavlov, é mais provável que venham à cabeça seus experimentos com cães, em vez dos parques que ele cultivou. Na verdade, muitos sequer se lembram do homem em si – destino estranho para um cientista cujo nome aparece nos livros didáticos do ensino médio em todo o mundo. Pouco se fala do lago onde o pesquisador nadava todas as manhãs, ou da bania aonde convidava os hóspedes, ou da amada bicicleta que comprou na Suécia antes da revolução de Lênin. 

Ou sobre como sobreviveu à revolução, por falar nisso.

Ivan Pavlov (segundo à direita) em seu laboratório. Leningrado, 1927

Antes de vir para Koltuchi, eu não fazia ideia de que as mesmas mãos que tocavam sinos para cães também cultivaram pomares inteiros de macieiras, ou que jovens chimpanzés costumavam clamar aqui entre as árvores e bustos de cientistas como Descartes, Mendel ou Sechenov. Aktuganova, a curadora de uma nova exposição permanente de arte e ciência localizada no porão do laboratório histórico de Pavlov, compartilha que foi o próprio cientista que transformou essa terra de uma aldeia avulsa, outrora habitada pela diáspora finlandesa, na primeira cidade acadêmica oficial do país. 

Cria do Império Russo

Nascido em 1849 no que ainda era o Império Russo, Pavlov era o mais velho de onze filhos criados por um padre ortodoxo russo e sua esposa. Devido a uma lesão precoce quando criança, ele não pôde começar a escola até os onze anos de idade. Apesar disso, mostrava um alto grau de inteligência e potencial acadêmico – já lia sozinho aos sete anos de idade e, depois de mudar de teologia para fisiologia (transferindo seus estudos de Riazan para São Petersburgo para fazê-lo), ele ganhou vários prêmios de prestígio ainda antes de se formar. 

Casa-museu do acadêmico Ivan Pavlov na cidade de Riazan, onde nasceu

Seu maior prêmio, porém, ainda estava por vir. Depois de passar uma temporada na Alemanha, onde cursou doutorado, ele retornou a São Petersburgo e acabou sendo convidado a organizar o Departamento de Fisiologia do Instituto de Medicina Experimental em 1891, que ele viria a transformar em um centro global de pesquisa fisiológica. Ele foi indicado ao Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina todos os anos após 1901  – até ganhá-lo em 1904, não por seu trabalho com cães, mas “em reconhecimento ao seu trabalho na fisiologia da digestão, por meio do qual o conhecimento sobre aspectos vitais do assunto foi transformado e ampliado”. Foi a partir daí que seu experimento famoso se tornaria possível.

Famoso experimento

Os “reflexos condicionados” pelos quais Pavlov é conhecido referem-se a como qualquer organismo com um sistema nervoso suficientemente desenvolvido pode desenvolver reflexos especiais em resposta ao seu ambiente. Para tal, Pavlov criou câmaras à prova de som onde os cães seriam mantidos, sendo o único estímulo um pouco de comida ou o tilintar de um sino. O sino era tocado antes que o cachorro recebesse carne e, assim, os cães aprenderam eventualmente a associar o sino com a alimentação. Usando sua experiência com o sistema digestivo, Pavlov foi capaz de medir os níveis de saliva dos cachorros para confirmar que suas glândulas produziam saliva em resposta ao sino, e não à visão ou cheiro de comida.

Ivan Pavlov assistindo a um experimento com um cachorro, verão de 1934

Foi essa descoberta que o levou a se tornar um nome familiar. A curiosidade, combinada com o mistério associado a seus experimentos, levou seu complexo de laboratório a ser chamado de Torre do Silêncio. Ficava localizado no centro da antiga capital imperial, na ilha Petrogradski, mas o desenrolar da história não necessariamente proporcionaria a Pavlov o silêncio que ele tanto procurava. A eclosão da Primeira Guerra Mundial e a revolução que se seguiu transformaram a cidade em um cenário caótico de desordem e violência.

Primeira vila científica da Rússia

Embora Pavlov criticasse abertamente a ideologia soviética, seu trabalho lhe rendeu o respeito de ninguém menos que Lênin. “Ele não podia trabalhar em desordem”, diz Aktuganova, “e assim, Pavlov escreveu a Lênin uma carta que dizia 'dê-me um lugar para trabalhar em paz, ou eu emigrarei'.” O plano funcionou, e o cientista recebeu quase um milhão de rublos em ouro para realocar seu laboratório. Com isso, ele escolheu Koltuchi.

Ele então construiu um complexo de medicina experimental e o cercou com o que se tornou a primeira vila científica da Rússia. Isso incluía seu laboratório, uma casa (que raramente usava), um complexo com hotel, cafeteria e clube, cinco chalés para funcionários e, claro, os canis para cães, chimpanzés e outros animais com que trabalhava. Isso formou o núcleo de um conjunto de edifícios que se expandiram com os anos até se tornar um subúrbio funcional da crescente Leningrado (conhecida agora como São Petersburgo).

“Olhando para esse lugar agora”, diz Aktuganova, “você não imaginaria que uma figura mundialmente famosa morava aqui. Com o status da Unesco, deveria haver mais turistas e mais infraestrutura de suporte [a visitas]”.

Legado de Pavlov

Mas lembrar de Pavlov e suas contribuições nunca esteve na lista mais alta das prioridades nacionais – após sua morte por pneumonia em 1936, o suporte à vila continuou até a perestroika na década de 1980. Com foco maior em questões sociais, o dinheiro que seria normalmente investido nas ciências exatas acabou sendo redirecionado.

Ivan Pavlov em Koltuchi, região de Leningrado

Ainda existe, no entanto, um museu local que conta como Pavlov viveu os últimos anos de vida. Há fotos dele com sua esposa Serafima, ou Sara, e seus filhos (dos quais dois morreram enquanto Pavlov ainda estava vivo). Ao lado há fotos de visitantes internacionais como Niels Bohr e H.G. Wells. Cliques com artistas famosos, como Iliá Repin, também podem ser encontrados, confirmando a época em que Pavlov viveu – uma época em que arte e ciência não eram necessariamente concorrentes. A exposição permanente no porão, uma colaboração entre jovens artistas e cientistas, busca revitalizar essa tradição.

Monumento a Pavlov e seu cachorro em Koltuchi

Desde então, asteroides, crateras lunares e princípios científicos foram nomeados em sua homenagem, mas tornou-se comum ouvir sobre Pavlov sem saber nada sobre o próprio homem. Esses edifícios, assim como seus famosos cães, permanecem como um legado que não será esquecido tão cedo. O que resta é um testemunho de um cientista notável que mudou a maneira como pensamos sobre nosso comportamento, nossos desejos e outros segredos ainda trancados em nossos cérebros.

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