O gênio secreto da física que nunca foi à universidade e foi escondido por saber demais

Ciência e Tecnologia
EKATERINA SINELSCHIKOVA
O soviético Iákov Zeldovitch foi citado por Stephen Hawking, criou a pólvora "Katiucha" e foi co-inventor da bomba de hidrogênio, mas não tinha diploma universitário. Ele foi obrigado a viver em uma cidade fechada por quase 20 anos porque sabia demais.

A cidade de Sarov, no interior da Rússia, tinha uma natureza selvagem e era de difícil acesso por suas densas florestas e pântanos. Conhecida pelo codinome Arzamas-16, ela desapareceu dos mapas soviéticos em 1946, passando de uma povoação esquecida a um lugar-chave para a pesquisa e desenvolvimento de armas nucleares e termonucleares.

Essa “cidade fechada” tinha entradas e saídas estritamente limitadas. Ali, os visitantes eram proibidos de tirar fotos até mesmo nas ruas ou de contar o que havia na cidade a outras pessoas.

Antes da Revolução de 1917, Sarov era um local de peregrinação devido à localização do mosteiro de São Serafim. Após a guerra, porém, ela passou a ser habitada por cientistas, entre eles, os melhores físicos da URSS.

Iákov Zeldovitch, um homem de meia-idade, baixo, forte, sempre alegre e de óculos redondos, ia todas as manhãs ao centro nuclear de Sarov. Ele estava no epicentro do projeto nuclear soviético. O cientista ainda não era conhecido mundo afora, mas os que o conheceram não acreditavam que uma pessoa pudesse saber tanto. “Agora eu sei que você é uma pessoa real, não o pseudônimo de um grupo de cientistas como o Bourbaki”, disse Stephen Hawking quando conheceu Zeldovitch, na década de 1970.

Acadêmico sem diploma

Todas as biografias de Zeldovitch ressaltam o fato de que o cientista, um dos mais importantes da URSS, não tinha educação superior formal.

Aos 17 anos, ele conseguiu um emprego como assistente de laboratório no Instituto de Processamento Mecânico de Minerais, já que não queria estudar seguindo o programa padrão. Ali, ele já teve inúmeras ideias brilhantes e ousadas, que, na maioria dos casos, irritavam os professores.

Logo Zeldovitch se cansou de tudo e foi trabalhar para o Instituto de Física Química. Ele tentou obter um diploma no Departamento de Física da Universidade de Leningrado, estudando ao mesmo tempo em que trabalhava, mas não conseguiu se formar.

Na década de 1930, a falta do diploma universitário foi um obstáculo à carreira científica, mas Zeldovitсh conseguiu obter permissão para defender o mestrado sem terminar o bacharelado. Foi assim que, aos 22 anos, defendeu seu mestrado, aos 25, tornou-se doutor em ciências físicas e matemáticas e, aos 29, recebeu seu primeiro de quatro Prêmios Stálin pelas descobertas nos estudos sobre explosões e combustão, sua maior paixão.

Hobby nuclear

Zeldovitch foi enviado a Sarov depois que, junto ao físico Iúli Khariton, descobriu como criar uma bomba nuclear. Ele fez cálculos que mostravam que uma reação em cadeia não podia ocorrer em urânio natural e era necessário aumentar significativamente a proporção do isótopo de urânio-235.

Outro acadêmico, Ígor Tamm, comentou a descoberta de Zeldovitch: “Você sabe o que significa essa nova descoberta? Isso significa que é possível criar uma bomba que pode destruir uma cidade dentro de um raio de talvez dez quilômetros do epicentro da explosão.” Os primeiros artigos sobre reações em cadeia foram publicados em 1939.

Mas o mais surpreendente é que nos anos 1930 e no início dos anos 40, poucas pessoas se interessavam por armas nucleares. A maioria dos cientistas soviéticos ainda era cética sobre a possibilidade de sua criação.

Assim, Zeldovitch e Khariton trabalhavam na criação de armas nucleares como um hobby, depois do trabalho, sem receber nada por isso. Quando pediram 500 rublos para experimentos, receberam uma negativa. O governo também não tinha interesse nenhum em desenvolver armas nucleares.

Oficialmente, Zeldovitch foi enviado a Sarov por outra razão: ele era encarregado do desenvolvimento de novos mísseis e foguetes de ataque.

Em apenas alguns meses, o cientista descobriu um novo tipo de combustão de pólvora surpreendente rápida. Foi assim que nasceu o lançador de foguetes múltiplos BM-13, conhecido como "Katiucha". Os cientistas alemães não conseguiram desvendar o segredo da balística do projétil calculada por Zeldovitch até o final da guerra.

Os artigos de Zeldovitch sobre bombas nucleares foram relembrados apenas em 1945, após a os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki pelos Estados Unidos. Esses textos de Zeldovitch e Kharitonov foram os últimos publicados em literatura aberta, e depois disso todos os estudos sobre o tema se tornaram secretos.

O próprio Zeldovitch, a pessoa-chave do projeto nuclear soviético, também foi tornado secreto: ele já não podia publicar seus trabalhos científicos.

Explodir a lua

Uma exaustiva corrida nuclear se iniciou entre a URSS e os EUA. Zeldovitch, como o principal teórico do país, montou seu próprio grupo de cientistas, físicos talentosos que foram todos transferidos para Sarov.

Alguns anos depois, Andrei Sákharov também foi enviado para fortalecer o grupo e propôs seu próprio projeto de bomba nuclear, que foi aceito para desenvolvimento e testes em 1949, em Semipalatinsk.

Paralelamente, os mesmo cientistas estavam trabalhavam na criação de uma bomba de hidrogênio, que foi testada em agosto de 1953. O poder da bomba RDS-6 excedeu o poder das primeiras bombas atômicas na URSS e nos EUA em 20 vezes. Além disso, a bomba soviética era transportável e podia ser colocada a bordo de um bombardeiro Tu-16, enquanto a bomba americana pesava 54 toneladas e era do tamanho de uma casa de três andares.

Mas o projeto nuclear mais ambicioso de Zeldovitch surgiu em 1958, na véspera do envio da sonda soviética Luna-2 à Lua. Essa sonda foi o primeiro aparelho do mundo a pousar na superfície do satélite da Terra. Um ano antes dessa missão, Zeldovitch teve uma ideia insana: equipar a sonda com um projétil nuclear e explodir a lua.

“A ideia era que, quando a explosão ocorresse, ela seria acompanhada por um flash tão grande que todo observatório espacial seria capaz de registrá-lo”, escreveu o cientista e engenheiro soviético Borís Tchertok, o mais próximo assistente do chefe do programa espacial soviético, Serguêi Korolióv.

Embora essa ideia tivesse bastante apoio, o governo decidiu não equipar a sonda com a ogiva nuclear, devido aos riscos altos de não conseguir transportar a bomba até a Lua e porque essa bomba poderia cair na Terra. Os americanos também estudaram a possibilidade de explodir a lua — mas tampouco eles se atreveram a fazê-lo.

A maior explosão

Zeldovitch voltou de Sarov para a capital soviética em 1963 e começou a trabalhar no novo projeto. “O trabalho no campo da teoria da explosão me empurrou psicologicamente para os estudos de explosões estelares e da maior explosão possível, ou seja, a explosão do Universo”, anunciou Zeldovitch.

Ele voltou a estudar astrofísica e cosmologia, suas ciências mais amadas desde o trabalho na primeira universidade. Após duas décadas de um trabalho bem-sucedido nas ciências civis, Zeldovitch recebeu um dos mais prestigiados prêmios astrofísicos, a medalha de ouro Katarina Brus, com a frase "por uma vida dedicada à astronomia e pela notável contribuição para o desenvolvimento da ciência".

Suas últimas pesquisas e descobertas estão relacionadas com a teoria da formação de buracos negros e estrelas de nêutrons. Stephen Hawking mencionou quase todas as pesquisas de Zeldovitch em seus famosos trabalhos sobre a teoria da evaporação de buracos negros.

Zeldovitch participou do desenvolvimento da teoria da evolução do Universo "quente", estudou as propriedades da radiação cósmica de fundo em microondas, a teoria da formação de galáxias e a teoria da inflação cósmica.

Uma de suas realizações astrofísicas mais famosas é o Efeito Siunyáiev-Zeldovitch. Em 1969, junto com Rachid Siuniaiev, ele calculou que a radiação cósmica de fundo em microondas deveria ser espalhada em aglomerados de galáxias, como resultado da mudança da sua temperatura. Em 2008, esse efeito possibilitou a detecção de um novo e enorme aglomerado de galáxias através do Telescópio do Pólo Sul.

No total, seu patrimônio científico inclui quase 500 trabalhos científicos, mais de 30 monografias e livros didáticos, muitos dos quais traduzidos para outros idiomas. Em 1979, ele foi eleito membro estrangeiro da Academia de Ciências dos Estados Unidos e da Royal Society of London, da Royal Astronomical Society of Great Britain (Sociedade Astronômica Real da Grã-Bretanha) e de uma dúzia de outras academias do mundo.

O cientista morreu em 1987, aos 73 anos de idade. Pouco antes de sua morte, ele falou com entusiasmo sobre seus sucessos astronômicos para um colega de projeto nuclear, o acadêmico Lev Feoktistov.

Ao se despedir, Zeldovitch disse a Feoktistov: “Você consegue adivinhar qual foi o momento mais brilhante para mim? Sim, sim, isso... Ainda tenho um sonho, quero escrever outro livro sobre detonação.”

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