Essa antiga vacina soviética contra tuberculose poderia matar o coronavírus?

Ciência e Tecnologia
EKATERINA SINÉLSCHIKOVA
Cientistas dos EUA estão estudando os efeitos de uma vacina centenária sobre a covid-19. O Russia Beyond reuniu informações sobre a BCG para entender o quão útil poderia realmente ser contra o novo coronavírus.

Ultimamente, diversos veículos e agências de comunicação – entre eles, o New York Times, Reuters, Bloomberg e Daily Mail – divulgaram a possibilidade de que uma vacina bastante comum, dada a milhões de crianças em idade escolar, também possa ser a chave para tratar o novo coronavírus: a Bacillus Calmette-Guérin (BCG).

Atualmente, na Rússia, a vacina é aplicada em todas as crianças de 3 a 5 dias de idade, com exceções ditadas pelas condições de saúde. Eis então que surge a dúvida: isso poderia, de alguma forma, estar relacionado ao número relativamente baixo de casos de covid-19 registrados na Rússia (3,548 em uma população de 144,5 milhões)?

Qual a fonte desses dados recentes?

As descobertas são do Departamento de Ciências Biomédicas da Faculdade de Medicina Osteopática do Instituto de Tecnologia de Nova York. O estudo, publicado no MedRxiv, mostra uma correlação direta entre os índices de mortalidade exibidos por países onde a BCG é obrigatória e aqueles em que essa vacina é opcional. 

“Descobrimos que países sem políticas universais de vacinação BCG (Itália, Holanda, EUA) foram mais severamente afetados em comparação com países com políticas universais e de longa data de BCG”, alegam cientistas, acrescentando que a “vacina BCG também reduziu o número dos casos de covid-19 registrados em um país”.

O número de mortes relacionadas ao novo coronavírus em países onde a BCG é opcional excede os demais em 30 vezes, segundo as estatísticas. Os médicos alegam que estão vendo evidências da eficácia da vacina ao comparar os números da Espanha com os de Portugal. No primeiro, que mostra índices catastróficos de morte,  BCG não é obrigatória desde 1981. Já em Portugal, a vacina é questão de escolha pessoal desde 2017. O mesmo acontece com a Alemanha Oriental (na ex-RDA, a BCG era obrigatória), onde o número de mortos é menor do que em sua contraparte ocidental.

Mas que vacina é essa?

A BCG é a única vacina certificada contra tuberculose no mundo. É dada anualmente a 130 milhões de pessoas em todo o mundo. Em 2018, cerca de 153 países ofereceram a vacina. Nos países desenvolvidos, sua aplicação é irregular e frequentemente associada a grupos de crianças de alto risco – ou simplesmente não são disponibilizadas, dados aos baixos índices de tuberculose no país. EUA e Holanda, por exemplo, nunca tiveram motivo suficiente para tornar a BCG prática generalizada.

Cerca de 10 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de tuberculose todos os anos. Países de alto risco, como Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, são onde a BCG é obrigatória, embora não resultem em imunidade total – apenas 60 a 80%.

E qual é a participação soviética nisso tudo?

A URSS se tornou o primeiro país em que a vacina BCG se tornou obrigatória para todos. Na verdade, foi desenvolvida na França em 1919 por Albert Calmette e Camille Guérin, com base em uma cepa viva enfraquecida da bactéria causadora de tuberculose.  No entanto, a primeira vacina, em forma líquida, não seria aprovada por muito tempo (em 1930, matou 72 dos 240 indivíduos em Lubeck devido a um erro).

Em 1925, Calmette passou a fórmula da vacina aos cientistas soviéticos, e a nova versão acabou passando no teste. Três anos depois, foi adotada pela Liga das Nações.

Não apenas para tuberculose

Testes com a vacina estão em curso desde então. Hoje, sabe-se que a BCG também tem uma taxa de eficácia de 20% contra hanseníase, bem como câncer de bexiga. Até 2015, acreditava-se ser eficaz contra úlcera de Buruli.

Mas, afinal, e a covid-19?

Em março passado, grupos focais na Austrália, Holanda, Alemanha e Grécia começaram a testar sua eficácia também contra covid-19. No entanto, existe um contraexemplo nessa análise: a China. No país asiático, embora a vacina BCG seja comum, isso não impediu que o país fosse severamente atingido pela infecção.

Além disso, não se sabe quanto tempo dura a proteção da BCG. Estudos indicam um período de 10 a 15 anos antes de começar a perder o eficácia – e isso apenas em casos de inoculação infantil; os efeitos nos adultos exigiriam novas pesquisas.

Os autores do presente estudo também acrescentam que “países diferentes usam diferentes esquemas de vacinação com BCG, além de diferentes cepas da bactéria”. Ainda é preciso explorar qual linhagem usar para a infecção atual.

O que os médicos russos estão dizendo?

“A vacinação com BCG pode ser considerada uma das formas de estimular o sistema imunológico. Em certas situações, isso realmente ajuda. No entanto, novamente, para confirmar isso, precisamos de ensaios clínicos”, diz Nikolai Korobov, médico-farmacologista e professor assistente da Faculdade de Medicina Fundamental da Universidade Estatal de Moscou.

Ninguém na Rússia contesta que a vacina seja um reforço imunológico eficaz – há efeito perceptível e bem documentado disso. No entanto, a eficácia contra covid-19 vem enfrentando duras críticas.

“A única coisa que a bactéria de tuberculose e o coronavírus têm em comum é a maneira como são transmitidos. O resto são fantasias”, afirma Aleksandr Panteleev, médico-chefe do hospital municipal de tuberculose de São Petersburgo. “A vacina BCG tem vida útil curta, no máximo 10 anos. Por isso é preciso repetidas inoculações. Em um organismo adulto, a vacina simplesmente não prospera. Então, dizer que criamos alguma forma de imunidade contra o coronavírus é simplesmente bobagem. Além disso, são dois tipos completamente diferentes de infecções, e como alguém poderia descobrir um mecanismo de cruzamento entre elas não está claro para mim.”

O vacinologista Evguêni Timako também acredita que, na ausência de uma prova conceitual, esses debates não significam muito. “Se estamos falando que essa vacina protege contra covid-19, devemos examinar as vacinas que o sujeito obteve no passado e, ao menos, sua lista de alergias. Por ora, há mais perguntas que respostas.”

No entanto, mesmo considerando resultados promissores dos ensaios com BCG como a cura para o coronavírus, não se manter esperanças de uma rápida implantação, acrescentam os especialistas. “A vacinação deve ser realizada antes do início da epidemia. Não acredito que isso possa afetar a pandemia atual. Para o sistema imunológico reagir, um certo período de tempo deve passar após o recebimento da injeção”, explica o imunologista Vladímir Bolibok.

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