Quarta-feira, meio-dia: o estacionamento está cheio, e a neve se transformou em um lamaçal. A 10 metros fica a entrada, mas ninguém se aproxima. As paredes dentro são lilás e azul turquesa, o teto é baixo, e está tão silêncio que é possível ouvir as antigas lâmpadas fluorescentes zumbindo. De tempos em tempos, surgem pessoas em macacões, e, entre nós, há um posto de controle e uma passagem estreita com catraca.
Recentemente, a Fábrica Eletromecânica Kupol de Ijevsk (1.200 quilômetros a leste de Moscou), fabricante de sistemas de defesa antimíssil Tor e Osa, entre outros aparatos de defesa, começou a realizar tours para jornalistas, que são levados para circular por oficinas “clandestinas”, onde os segredos vão sendo, aos poucos, revelados. Por enquanto, porém, o turismo industrial ainda tenta superar a tradição soviética de esconder tudo o que pudesse ser ocultado – mesmo sem motivos.
Um homem magro de cabelos escuros, calça jeans, jaqueta e sapatos asseados, chamado Serguêi, conta que, até o momento, nenhum jornalista estrangeiro jamais esteve na fábrica, a qual descreve como uma “instalação de acesso restrito”. Ele é um dos membros da guarda local e, assim que a área de entrada fica lotada de jornalistas russos, Serguêi imediatamente dispara: “O que a União Russa de Biatlo está fazendo aqui? E o ‘Sovetsky Sport’ [Diário Esportivo]? O que os esportes têm a ver com isso, camarada? Vocês não podem entrar”, diz ele, encolhendo os ombros.
Duas jovens permanecem antes do posto de controle. Os demais, que rapidamente se esquecem das garotas, continuam pelo pátio e através de uma pesada porta de aço.
O mantra do controlador de tráfego
Dentro, há um cheiro forte e peculiar de metal – como se estivéssemos farejando moedas. Por trás de prateleiras de armazenamento de ferro, há escritórios, mas poucos trabalhadores estão sentados ali; a maioria está disperso em torno do enorme hangar do tamanho de dois campos de futebol. Atrás do vidro espesso é possível ver o maquinário despejando uma solução de algum tipo sobre peças metálicas.
“Esta é a área de processamento do metal, mas não fotografaremos nada aqui”, avisa Serguêi.
Logo à frente há uma porta; depois outra, e outra. Chegamos então ao lugar esperado: sistemas de defesa aérea Tor-M2, em duas fileiras, surgem diante de nós. Ao redor vê-se fios, placas de metal, parafusos e mais parafusos. Os trabalhadores, como se fossem cirurgiões, abrem algo, retiram, apertam e o colocam de volta lentamente.
“Eles agora trarão o Homem para conhecê-los”, diz Serguêi.
O tal Homem aparece rapidamente – robusto, embora baixo, e com sorriso intermitente no rosto. Ele se parece mais com um jardineiro de boa índole a quem poderia pedir informações do que um engenheiro de sistemas militares.
“Os Tors sempre estiveram aqui [na oficina] e eu passei toda a minha com esses sistemas, todos os meus 35 anos de trabalho. Atualizamos o Tor desde que foi criado. Entre os nossos clientes estão o Ministério da Defesa, compradores especiais, e também o enviamos para o exterior. Funcionamos 24 horas, em dois turnos, com cada um realizando diferentes tarefas”, explica Aleksandr Tchirkov, enquanto sorri para a versão ártica do Tor-M2 ao lado que, por estar sem chassi, pode ser movimentado.
“Esse tinha um urso polar pintado quando o exibimos na parada de 9 de maio [do Dia da Vitória sobre a Alemanha nazista] na Praça Vermelha. Aqui está, essa belezura.”
Tchirkov, 59 anos, fala sobre o sistema de defesa área como se fosse uma pessoa. “Leva um bom tempo para conhecê-lo – passei minha vida inteira para conhecer todos os seus aspectos – e nunca me canso dele”, diz. Tchirkov se descreve como um controlador de tráfego: chega às 8 de manhã, distribui tarefas e supervisiona os parâmetros – checa os produtos usando instrumentos e depois envia as “belezuras” para salas especiais onde passam por testes a temperaturas de 50ºC e -50ºC.
“O sistema é projetado para alvos que voam em baixa altitude e velocidade. Aqueles que são difíceis de detectar. Esses são os mais complexos. Eles voam sobre o solo ou florestas como um pássaro. E podem ser tanto um pássaro como o inimigo.”
Tchirkov não revela o custo de tal sistema: os aparatos de defesa antiaérea são sujeitos a negociações quando construídos para exportação. A variação de preço pode ser enorme, e Tchirkov garante que, “sinceramente”, não sabe quanto custa.
“Equipamento militar perfeito – proteção confiável”, lê-se em um grande cartaz na oficina. Durante os anos em que trabalha na Kupol, a situação só ficou desfavorável uma única vez – nos anos 1990. “Não havia encomendas, mas sobrevivemos.”
Serguêi, o segurança, transita por nós, movendo a cabeça da esquerda para a direita, procurando pelos jornalistas que vagam entre os Tors.
“Eu contei-lhes todos os segredos”, Tchirkov, para aporrinhar o colega.
“Todos?”, brinca Serguêi, sem conseguir disfarçar o nervosismo. Mas essa deve ser a menor das preocupações. Tchirkov contém suas palavras, como qualquer militar, e faz pausas antes de dar as respostas. Por exemplo, ao questioná-lo sobre espiões e o receio que se tem dessas pessoas, ele responde: “Não houve espiões. Já fui abordado? Não, não fui. Os colegas já disseram algo que não deveriam? Não, não disseram.”
Ou:
“Há coisas sobre as quais você não pode falar nem mesmo com as pessoas mais próximas e queridas?”, questiono.
“Sim, existem”, ele rebate.
“E o que você faz em relação a isso?”
“Nada. Eu não falo sobre elas. Quando você passou sua vida toda...”, ele começa, antes de cortar a si próprio: “Mas por que eu falaria sobre elas?”
Tchirkov segue uma regra, ou mantra: “Não fale demais. Isso é tudo”.
“Grandes ações exigem pulso firme”
Tchirkov começou a trabalhar na Kupol logo após se formar na universidade técnica – segundo ele, foi “alocado” na fábrica. Na linguagem soviética, porém, isso significava trabalhar aonde quer que fosse enviado, sem fazer questionamentos.
Entre as plantas industriais, existem mais de 20 apenas em Ijevsk – desde fábricas de plásticos e cerâmica a metalúrgicas e fabricantes de dutos.
“Depois de se formar, só era possível seguir carreira em uma fábrica da região. Elas fazem parte da história de Ijevsk. [A República da] Udmúrtia é uma região remota, então, é um lugar ideal, e nunca houve nada além disso aqui. A cidade não é grande e permaneceu igual pelos últimos 30 anos – com cerca de 650 mil habitantes. Toda a minha família vive aqui desde a Revolução, e todos trabalham em fábricas”, conta.
“Isso significa que nesses 35 anos você nunca quis mudar para um trabalho diferente?”, pergunto. Tchirkov garante que isso jamais passou por sua cabeça; além do mais, o salário ali compensa. Além disso, Ijevsk não o deixaria partir – na cidade, tem filhos, netos e um apartamento. “Nasci e fui criado aqui”, continua.
“Eu tenho apenas um sonho: viajar. Eu ainda não poderei viajar para nenhum país capitalista por cinco anos depois de me aposentar. A Europa inteira está fechada para mim. E eu adoro viajar. Quando eu estava na costa do mar Vermelho, vi coisas maravilhosas. Depois, postei no YouTube um vídeo acariciando uma moreia”, conta.
Os olhos de Tchirkov se iluminam, e seu rosto estampa um sorriso de ponta a ponta. Ele gesticula contra o Tor ao fundo para me mostrar com suas mãos o quão grande era a tal moreia. Serguêi, enfim, consegue reunir todos em um grupo.
Passamos mais uma vez pela Oficina número 133, onde o metal é processado. Por algum motivo, agora, uma hora depois, temos permissão de filmar.
“Algum arrependimento?”, pergunto a Tchirkov, que me fita de forma pensativa.
Desta vez, sua resposta vem de imediato. “Sim” é tudo que ele me diz, embora, mais tarde, depois de desligar o gravador, acrescente que há coisas mais importantes na vida do que arrependimentos pessoais. Segundo ele, existem imperativos como “grandes ações exigem pulso firme” – um dizer russo para ilustrar que as palavras devem ser apoiadas com força –, referindo-se às suas responsabilidade na fábrica.
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