Testemunhas de Jeová durante cerimônia religiosa em Moscou
Getty ImagesA resistência das autoridades russas às Testemunhas de Jeová vem de longa data, e a interpretação distinta das inúmeras passagens bíblicas é um fator de desencontro com os preceitos da Igreja Ortodoxa Russa. Na melhor das hipóteses, as Testemunhas de Jeová foram ignoradas no país ao longo do século passado; na pior delas, banidas. Em 1951, por exemplo, o então líder soviético Iossef Stálin exilou 8.000 seguidores na Sibéria – número que equivalia a 80% de seu total na União Soviética na época.
As Testemunhas de Jeová, porém, qualificam a recente resolução como ainda mais grave, pois, além de proibida, a religião está sendo rotulada como grupo extremista.
Proibição controversa
De acordo com dados coletados por Roman Silantiev, representante do Ministério da Justiça russo, existem hoje em torno de 165 mil seguidores da religião no país.
Nos últimos anos, diversas congregações regionais das Testemunhas de Jeová foram fechadas, e mais de 60 de suas publicações, rotuladas como “materiais extremistas”.
Durante rituais, os seguidores ouvem sermões e ensinamentos de Jeová, além de participar de cantorias (Foto: Getty Images)
Em 15 de março, o Ministério da Justiça da Rússia entrou com um pedido junto à Corte Suprema pedindo para proibir a atuação da religião no país por ser um “grupo extremista”. A acusação se concentrou em materiais impressos que alegadamente proclamam a supremacia das Testemunhas de Jeová sobre outras religiões e justificam atos de violência contra seguidores de outros credos.
No mesmo dia, o vice-ministro da Justiça, Serguêi Guerassimov, ordenou a suspensão de todas as atividades das Testemunhas de Jeová no país até a decisão do tribunal, que veio a confirmar a sentença em 20 de abril.
O principal argumento apresentado durante as audiências, que levaram mais de um mês, foi composto por diversas decisões judiciais contra os centros regionais das Testemunhas de Jeová e que não haviam desencadeado reação da sede da igreja, o chamado Centro Administrativo.
No entanto, os advogados que representam o grupo enfatizaram que as congregações regionais não se reportam ao centro, e, portanto, as queixas contra elas não podem ser a base para a proibição de todas as Testemunhas de Jeová.
Também justifica-se que o Centro jamais participou das audiências nem recebeu advertências do Ministério da Justiça. Os materiais classificados como “extremistas” tiveram, porém, sua impressão suspensa.
A tentativa de proibir a organização foi recebida com surpresa até mesmo entre os círculos mais leais às figuras públicas.
Maksim Chevtchenko, membro do Conselho Presidencial para a Sociedade Civil e Direitos Humanos, e também presidente do Centro de Estudos Estratégicos de Religião e Política do Mundo Moderno, afirma que a ação movida pelo Ministério da Justiça russo contraria os princípios fundamentais da liberdade de pensamento.
“As Testemunhas de Jeová, dificilmente, poderiam ser consideradas uma organização extremista”, diz Chevtchenko. “Elas nunca organizaram ataques terroristas ou convocaram ações ilegais; muitas vezes são acusadas de apresentar sua religião como a verdade suprema, mas muitas igrejas o fazem”, completa.
“Eu acho que a verdadeira razão para essas perseguição é o fato de eles apelam para as pessoas diretamente, pregando cara a cara, competindo, assim, com a Igreja Ortodoxa Russa em algumas regiões. É óbvio que o Patriarcado de Moscou e altos funcionários da segurança ligados a ele estão por trás de tudo isso”, sugere.
Reino bem guardado
O Centro Administrativo das Testemunhas de Jeová russo está localizado em São Petersburgo. Liguei para eles enquanto o julgamento ainda estava em andamento, mas logo após a ordem de suspensão foi emitida pelo Ministério da Justiça. Disquei o número que encontrei em seu site e, para minha surpresa, o escritório estava aberto.
Uma voz masculina me cumprimentou no outro lado da linha e então lhe disse que gostaria de assistir a uma reunião das Testemunhas de Jeová em Moscou. Ainda que a suspensão significasse o cancelamento de todas as reuniões, o homem me deu um endereço na capital: rua Mikhalkovskaya, 36, “todos os sábados e domingos”.
Para lá segui no fim de semana. O local fica a apenas uma curta caminhada da estação de metrô Koptevo, a quase 10 quilômetros do Kremlin. No endereço, encontro um prédio de dois andares construído nos anos 1920 para uma fábrica de matéria têxtil e que, mais tarde, tornou-se um centro comunitário para os proletários.
Atualmente propriedade privada, o prédio é hoje chamado de Salão do Reino. À frente dele há uma fileira de dezenas de pessoas e seguranças vestidos de preto (também membros da congregação). Suspeitando de minha presença, puxam-me de lado e questionam o propósito de minha visita – e então me deixam entrar.
Depois de vistoriarem meu casaco, entro em um salão para cerca de 300 pessoas. O espaço está quase cheio e tenho dificuldade para encontrar um assento livre em uma das fileiras traseiras. Mas, antes que eu tenha a chance de me acomodar, sou abordado por um homem, Anatóli (conforme mostrava seu crachá), que então inicia um interrogatório de 10 minutos: pergunta tudo sobre mim, onde vivo, e se sou jornalista.
Anatóli me pede para que eu não tire fotos, mas consigo registrar algumas imagens com o meu celular. Ele também me pergunta como descobri sobre o encontro. Aquele não era apenas um culto regular da igreja; tratava-se de uma convenção especial que acontece duas vezes por ano, com a presença de toda a liderança.
Neste salão – aparentemente, o menor deles – assistimos à reunião por meio de uma projeção; o evento em si acontece no salão principal, no segundo andar, onde há ainda mais pessoas. Anatóli não desconfia do disfarce e parece satisfeito com minhas respostas, mas sugere que voltemos a nos encontrar após a convenção.
O preço da gratidão
O telão apresenta dois homens sentados de lados opostos no palco, representando uma cena – uma conversa entre dois irmãos. A esposa do irmão mais novo está com uma doença séria e precisa de uma transfusão de sangue, o que é estritamente proibido aos membros; por isso, o irmão está ali para aconselhá-lo.
“Preciso de ajuda de alguém com clareza de ideias”, diz. A conversa termina com a instrução do irmão mais velho: “O mais importante é manter a fé em Jeová. Mesmo que uma pessoa morra, Jeová pode trazê-la de volta à vida”. E o público aplaude.
Quase todos estão segurando uma Bíblia e um caderno para tomar notas. O último discurso chama especial atenção – é de Nikolai, um supervisor itinerante. Na hierarquia das Testemunhas de Jeová, é ele quem supervisiona as várias congregações locais e instrui seus seguidores, enquanto vive de suas doações.
Nikolai se parece com um membro do Komsomol – um jovem bem apessoado e de olhos brilhantes. Ao longo de seu fala, faz longas pausas teatrais e assume um tom dramático ao se pronunciar sobre o mais grave pecado de todos – o da descrença – e sobre como evitá-lo. “Em breve, Jeová destruirá o mundo antigo, o da injustiça, e só aqueles que não se desviaram do caminho da fé serão recompensados”, alerta.
Ao final do discurso, o jovem sugere que a congregação comece a cantar a “Canção 43” (“Permaneça acordado, permaneça firme, torne-se poderoso”) que soa um tanto como La Marseillaise. Na sequência, o supervisor dirige-se à plateia com uma pergunta: “Devemos dar uma oferta modesta àqueles que organizaram essa convenção como uma expressão de nossa gratidão?”. Os aplausos novamente tomam conta da sala.
Dentro do espaço, há ainda duas grandes caixas com a frase “doações para a causa global”, e os membros do grupo voluntariamente colocam dinheiro nas caixas. Não consegui descobrir o valor total, mas muitas pessoas foram generosas em suas doações, oferecendo entre 1.000 e 5.000 rublos (cerca de US$ 17 a US$ 88, respectivamente).
Dias de Apocalipse
Quando saio do prédio, Anatóli, o porteiro, me confronta novamente. Ele então me pergunta se eu gostaria de saber mais sobre as Testemunhas de Jeová e se sou casado. E logo fico sabendo que até potenciais membros são desaconselhados contra o casamento com incrédulos. Em seguida, trocamos números de telefone.
Pouco depois, conheço também Ekaterina, uma mulher de meia-idade que me convida para outro evento semanal das Testemunhas de Jeová. Em pouco tempo, ela me explica que a igreja proíbe muitas coisas: não se pode realizar trabalhos do governo, participar de protestos e comícios (tanto da oposição como pró-Kremlin) nem servir no Exército.
Livros são usados por Testemunhas de Jeová para angariar novos fiéis (Foto: Aleksandr Artemenkov/TASS)
Ekaterina é uma antiga membra da igreja. Pouco antes da conversão, havia sido espancada por seu padrasto e estava sentada no chão, em desespero, orando a Deus. “Foi então que a campainha tocou – eram as Testemunhas de Jeová”, relembra. Depois de ler dois de seus livros, Ekaterina diz ter mudado de vida – assim como seu padrasto. Hoje, os dois seguem juntos, de apartamento em apartamento, levando às pessoas a palavra das Testemunhas de Jeová, bem como oferecendo seus livros.
Também garante que não ganha um centavo sequer com as obras vendidas, e, “pelo contrário, todos os meses doa de US$ 50 a US$ 100 para a causa global”.
Apesar de jamais ter pedido doações para mim, Ekaterina enviou, incessantemente, mensagens de texto nos dias seguintes ao encontro: “Não se sinta amargo, conosco todas as profecias se tornam realidade” e o “O Anticristo já está entre nós, a contagem regressiva começou” foram algumas delas.
‘Não vamos desistir’
Os debates sobre se as Testemunhas de Jeová são uma seita ou apenas um grupo de charlatões já eram constantes no país. Agora, porém, os seguidores podem enfrentar um processo criminal por um crime totalmente diferente – extremismo – punível com até seis anos de prisão.
Segundo Vladímir Riakhovski, membro da comissão sobre Associações Públicas e Organizações Religiosas da Duma do Estado (câmara baixa do Parlamento russo), diante da recente resolução, um movimento persecutório é praticamente inevitável.
“Muitas pessoas estão dizendo que é improvável que aconteça; bem, eu acredito que esteja prestes a acontecer. Em 2009, eles proibiram a congregação local em Taganrog, e em seguida, em 2012, gravaram uma cerimônia e iniciaram um processo criminal, que durou muito tempo”, diz Riakhovski. “Os vereditos começaram a sair apenas no final de 2015. Claro, houve apenas multas e sentenças suspensas, mas foram condenações, e agora está ficando pior ainda. Desta vez, não se trata somente de uma única congregação, mas da Rússia toda.”
Ao telefone, pergunto então para Anatóli, o porteiro: “O que você vai fazer agora que o tribunal proibiu todas as Testemunhas de Jeová?”.
“Vamos orar para Deus”, responde. “Todo mundo que tentou nos machucar acabou mal. Hitler queria nos queimar em suas fornalhas, Stálin quis que apodrecêssemos na Sibéria – e onde eles estão agora? Eles foram amaldiçoados – e nós vivemos. Não vamos desistir.” Segundo Anatóli, a liderança das Testemunhas de Jeová irá recorrer da decisão da Suprema Corte – e o farão sem qualquer violência ou extremismo.
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