Quando garota, Zina sonhava que se sentaria ao volante do KamAZ Foto: serviço de imprensa do Ministério das Situações de Emergência
Zina Nanaieva trabalha na seção regional do Ministério para as Situações de Emergência (MSE) e, como durante toda a sua vida, faz transportes rodoviários. Ela vive nos arredores da capital da República da Tchetchênia, Grózni.
Durante a guerra da Tchetchênia, as pessoas literalmente rezavam por ela. O duto para abastecimento de água fora destruído e, manobrando entre ruínas e tanques quebrados, era ela quem levava a água aos lares de idosos, à igreja e a dois hospitais.
“Nas ruas, jaziam cadáveres desfigurados, os cachorros uivavam, tudo em redor soltava fumaça. E mesmo assim, eu me sentava no caminhão e partia. As pessoas esperavam pela água. Os idosos e as pessoas com deficiência dos lares de acolhimento viviam em porões e comiam farinha diluída em água. Lembro-me que havia um rapaz doente mental que sempre vinha ao meu encontro com uma jaqueta queimada, e eu sempre lhe levava dois ou três torrões de açúcar.”
Na memória de Zina ficou bem marcado um certo dia de inverno de 1995 que poderia ter sido o último da sua vida. Era 3 de fevereiro, ela saiu de casa para ir ao hospital Nº 9, não muito longe, para visitar uma vizinha. Correndo de um porão para outro, foi parada por um grupo de reconhecimento do exército. Naquela altura, em Grózni, as mulheres atiradoras tinham sido armadas. Abater soldados russos rendia-lhes um bom dinheiro.
“E ali estava eu, de pé, com calças de camuflagem, vestindo uma jaqueta do meu irmão, que trabalhava na polícia. No bolso tinha a carteira de motorista, o registro de inspeção veicular do caminhão e um alicate que eu usava para abrir as portas dos porões. Os tchetchenos ‘pacíficos’ tinham outro aspecto. Na guerra, cada um tem a sua própria verdade. Eu teria sido executada se não tivesse aparecido na estrada o coronel com seus homens. Os soldados lhe passaram os meus documentos e vi que ele não acreditava em mim. Com ele, no veículo blindado, vinha um homem com chapéu tchetcheno. De repente o homem diz ao coronel, ‘Eu a conheço. Em 1993, na montadora Krasni Molot, ela me ajudou a levar a cúpula da mesquita até o meu povoado’. Naquele momento, me recordei de Wahid –nossos homens queriam extorquir dele uma fortuna para transportarem a cúpula. Então eu lhe perguntei: ‘Onde está a sua cúpula?’ Parti na direção indicada, coloquei-a no caminhão e levei até o povoado. Ele quis me pagar, mas eu não aceitei o dinheiro, pois não tinha sido pelos rublos que eu tinha ido ali, mas para que a mesquita ficasse de pé, para que a fé trouxesse esperança às pessoas.”
Dois anos depois deste episódio, Wahid e Zina se encontraram de novo nas ruínas de Grózni.
“Eu escuto: ‘Que carros você dirige? Está vendo aquele Ural? Sente-se ao volante e ponha-o em movimento. Mostre-nos o que você vale como motorista’. Havia muita lama e sujeira. Eu nunca tinha dirigido um Ural, ele tem comandos muito complexos e incomuns. Sentia as minhas pernas cedendo e pedi: ‘Comandante, deixe só eu me recuperar um pouco.’ Do blindado, acompanhavam os meus passos com ambas as metralhadoras apontadas para mim. Eu me acalmei, arranquei cuidadosamente, fiz um círculo e parei a um metro do coronel. Ele tirou a bolsa que tinha no ombro e escreveu qualquer coisa. No dia seguinte, comecei a trabalhar na Cruz Vermelha, a fazer a entrega de ajuda humanitária em um caminhão. Entregava roupa, farinha, óleo.”
Zina passava pelas estradas onde eram travadas as lutas mais acirradas. Permanentemente disparavam sobre a viatura, mas nem uma única vez furaram os pneus.
Mãe de soldado
Dirigindo pelos caminhos montanhosos, Zina pegava muitas vezes soldados feridos. Com as pernas quebradas, deixados sozinhos no desfiladeiro, eles não sabiam para que lado ficava a retaguarda e a frente de combate. "Por que estamos aqui? Estamos lutando pelo quê?", perguntavam os jovens, convocados à pressa para o serviço militar, ao mesmo tempo que balançavam no KamAZ da Zina.
“Eu fazia os curativos, cobria-os com as jaquetas, dava-lhes leite de cabra conseguido junto da população local. Depois levava-os diretamente para o MSE e para os Médicos Sem Fronteiras. Os meninos de lábios ensanguentados então sussurravam: "Agora você é a nossa mãe."
E completa:
“Quantos como eles eu não veria depois com equipamento militar e capacete de lado. Ainda uns meninos que tomavam vodka barata para ganhar coragem.”
Certa vez, conta Zina, eles entraram em sua casa, com os olhos muito abertos, gritando:
"‘Onde estão os homens?’. Mas eles estavam sem meias, tremendo de frio. Descalcei as meias de lã que tinha nos meus pés e dei a um dos meninos. Para o outro peguei do mezanino umas botas velhas. E nesse momento escuto wahhabis falando no quintal. Os bandidos vinham no encalço dos garotos. Enfiei os recrutas no porão e os mantive ali escondidos durante dois dias, depois peguei o KamAZ e os levei dali para fora. Dei-lhes chá e luvas para o caminho, pois não tinha mais nada.”
Perto da seção regional do MSE havia uma unidade militar. Zina dizia aos soldados: "Pessoal, digam do que precisam. Tirando vodka, trago tudo.
Eles pareciam crianças de tão felizes que ficavam com balas e chocolates, conta Zina. Havia entre os soldados uma crença de que ela era um talismã.
Natal
Outro dia marcado em sua memória é o de 31 de dezembro de 2000. Haviam chegado ao MSE da República da Tchetchênia os presentes de Ano-Novo coletados em toda a Rússia. Nas embalagens, junto com doces, haviam sido colocados peças de artesanato infantil, pinturas, bonecas, carrinhos de brinquedo. Era preciso entregar aqueles presentes em áreas remotas da Tchetchênia. A que provocava maiores temores era a região de Chotoiski. Era preciso fazer 90 km desde Grózni até uma estrada em serpentina na montanha. Zina Nanaieva se ofereceu como voluntária.
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“A mulher recebeu de Deus o poder para tornar o mundo mais belo, mais amável. Além disso, eu tinha um veículo militar que passava em todo tipo de terreno. Cheguei na sede da administração local e vi que as mesas já estavam postas, a árvore de Natal no lugar devido e as crianças lendo poemas. Abri a lateral do caminhão e comecei a descarregar os presentes. O coronel russo que veio ao nosso encontro perguntou: ‘Quem é o motorista?’ Com lágrimas nos olhos, admitiu que não sabia o que colocar debaixo do pinheiro para oferecer às crianças. Eles tinham conseguido tirar das rações militares os biscoitos para dar aos mais novos.”
Quando garota, Zina sonhava que se sentaria ao volante do KamAZ. No seu sonho, ela percorria as estradas das montanhas. A primeira vez que entrou em uma viatura pesada, logo passou para trás do volante. Desde então, roda pelas estradas ajudando. Há 43 anos.
Publicado originalmente pelo Moskóvski Komsomolets
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