Uma semana pela Crimeia

Seja pela Rússia ou Europa, moradores locais buscam "vida melhor" Foto: Serguêi Savostianov/RG

Seja pela Rússia ou Europa, moradores locais buscam "vida melhor" Foto: Serguêi Savostianov/RG

Em algumas ruas da região, observa-se milicianos com bandeiras russas, em outras, tártaros com indignação estampada no rosto. Será mesmo verdade que alguns deles querem se voltar para a Rússia? As ruas estão tomadas por conflitos? Correspondente da revista Russkiy Reporter acompanhou o cotidiano dos moradores da Crimeia para perceber como os últimos acontecimentos estão se refletindo na realidade local.

Na quinta-feira passada (27), houve uma manifestação perto do Conselho Supremo de Simferopol. A praça lotou de homens trajando roupa prática, prontos para lutar. “Estamos em uma época de guerras intercivilizacionais”, dizia o engenheiro aposentado Aleksandr à sua plateia de duas pessoas. “A civilização ocidental quer destruir o Islã e nós estamos no caminho.

“Por que as pessoas vieram para esta praça?”, pergunto aos defensores da teoria da conspiração. E a resposta vem na lata: “Elas sentem em sua espinha dorsal que isto tem que ser feito, caso contrário será a morte”.

A situação de incerteza em Kiev assustou as pessoas. Quem tem agora o poder? Os que estão lá são os nacionalistas do [líder nacionalista ucraniano Stepan] Bandera ou pessoas civilizadas? O que vai acontecer agora? Aparentemente, a espinha dorsal se ativa quando o cérebro deixa de entender. 

“Imagine uma catástrofe qualquer. Mas ninguém sabe ao certo o que está acontecendo ou como lutar, ninguém sabe por que é que aquilo aconteceu. As pessoas se assustam e cada uma vai agir dependendo de como ela funciona. Tem quem fuja, quem corra para ajudar…”, tenta explicar Aleksandr.

Foto: Serguêi Savostianov/RG

Percebe-se então a necessidade de fazer alguma coisa, mas não sabe o quê. Por cima da multidão em frente ao Conselho Supremo soa a canção: “Rússia, pátria minha, em sua alma protegeu você!”. E esta é a imagem da salvação na cultura que se desenvolveu na Crimeia, com uma base da Marinha russa na cidade de Sevastopol. As fortes tradições soviéticas não foram aqui substituídas por nenhuma outra.

Saudosismo popular

Um miliciano de Sevastopol chamado Pável segue para Simferopol a fim de participar da concentração a favor do referendo sobre a anexação da Crimeia à Rússia. “Tenho cinquenta e três anos e esta é a primeira vez que tenho a possibilidade de viver uma vida diferente”. diz ele. “A primeira coisa que é preciso fazer é ter pessoas normais no poder.”  

Questionado sobre quem seriam as tais “pessoas normais”, o miliciano sequer titubea: “Naturalmente virão russos, para começo de conversa”. Segundo ele, o que acontece na Rússia não tem nada a ver com a Ucrânia. “Você viu os Jogos Olímpicos? Quantas pessoas envolvidas nas seções esportivas, há muitas mais oportunidades. Na União Soviética a gente vivia muito melhor”, continua.

As milícias estão nas barricadas, montadas há pouco tempo nas estradas, patrulham as ruas e chegam para as manifestações. Elas se reuniram sob a bandeira da luta contra o nacionalismo ucraniano, mas, por enquanto, não foram avistadas gangues seguidoras de Bandera na península. Nas ruas, longe das concentrações, as pessoas vão levando calmamente as suas vidas em frente.

Foto: Serguêi Savostianov/RG

Porém, de acordo com o último censo, os tártaros formam 12% da população da Crimeia. “Nós não somos contra os russos, mas queremos viver de forma diferente”, gritam os homens tátaros, que se reuniram para proteger a emissora televisiva nacional ATP, em Simferopol. “Queremos nos virar para a Europa!”

De um modo geral, tanto os russos como os tártaros da Crimeia querem uma vida melhor - a diferença é que uns acham que isso acontece na Rússia, outros, na Europa.

Soldados verdes

À noite, pessoas vestidas de verde, com armas e máscaras, sem identificação na roupa, ocupam instalações importantes, seja o prédio do Conselho Supremo, o aeroporto ou a estação de trem. De manhã, eles ficam que nem estátuas, com armas em punho, e não interferem na vida alheia. Não falam com ninguém.

No aeroporto de Simferopol, quatro soldados com armas carregadas estão de pé embaixo da placa “Restaurante”. À frente dos soldados tem uma série de milicianos de jeans, com calças cáqui e jaquetas largas. E um pouco a seguir estão jornalistas do inteiro.

“Esses soldados são russos ou ucranianos?”, pergunta um jornalista a um pedestre. De lado, os taxistas da Crimeia assistem, sorrindo. Todos os moradores acham que são soldados russos. “E as pessoas que foram para o conselho supremo. Quem são elas? Quantas são?”, pergunta outro jornalista ao deputado do Conselho Supremo da Crimeia, Grigóri Ioffe.

“São pessoas que não estão de uniforme militar, não têm identificação”, responde Ioffe. “Eles estão usando máscaras. Não respondem às nossas perguntas. Como é suposto nesses casos... Mas de seu comando ficamos a saber que eles se intitulam a si mesmos autodefesa do povo russo.”

Eles tomaram conta da cidade e o deputado não sabe quem são. No dia seguinte, o presidente russo Vladímir Pútin recebeu, por parte do Conselho da Federação da Rússia, permissão para enviar tropas para a Crimeia.

Foto: Foto: Serguêi Savostianov/RG

“Boa noite a todos”, sai o porta-voz do Conselho Supremo da Crimeia à praça para junto do povo. “A sessão plenária do Conselho Supremo terminou. Pergunta número um, sobre a realização de um referendo no dia 31 referente à concessão do estatuto de república autônoma da Crimeia como um Estado do território da Ucrânia…”

“Ah-ah-ah-ah-ah”, soa um insatisfeito burburinho no meio da multidão e se escuta o grito: “Mas qual Ucrânia?! Queremos Rússia! Nós somos Rússia!”. 

 

Leia a versão integral da reportagem na revista Russkiy Reporter (Nº 9, 6 de março de 2014)

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