Mural com fotografias de crianças mortas na Escola n°1 Foto: Panos/Photographer
Exausto e com sede, entro na mercearia de Boris na Prospekt Kosta, em Vladikavkaz, capital da Ossétia do Norte. O calor escaldante não favorece a minha aparência; minha camisa está suja e encharcada de suor. Da sala dos fundos aparece um homem de cabelos grisalhos – Boris. Ele vive em Beslan e vai me guiar por sua cidade.
Dirigimos pelas estepes da Ossétia, deixando os altos picos do Cáucaso para trás. Sento-me em um Lada vermelho sem assentos e com a janela escancarada. Viramos em direção à casa de Boris. Paredes de tijolo com chaminés vermelhas cercam o pátio interno e o jardim com cozinha externa. Videiras sobem pela parede em direção à janela da sala. A mãe de Boris segura minha mão e me agradece por ser seu convidado. “Sente-se, coma. Minha nora, sirva ao convidado e a seu marido”, diz a senhora.
Foto: Robert Neu
Os ossetas não perderam a hospitalidade mesmo depois do atentado terrorista de 2004. “Nós não queremos ficar bêbados, mas a tradição exige”, diz Boris, ao me servir um pouco de bebida. Ele descasca alho, corta o pão e ergue o copo. Entoa uma canção de louvor e do alto de sua hospitalidade me serve com o que tem de melhor. Eu, por sinal, só tinha a oferecer em troca as marcas de barro que meu sapato deixou no chão. Tocado, bebo o que ele gentilmente me serviu, mas meu rosto se altera assim que o amargo da bebida queima a garganta. Depois de três doses, a tradição está cumprida.
“Assim que ouvi os primeiros tiros, assim que os terroristas desgraçados feriram a nossa esperança, nosso futuro, nosso amor, eu peguei a minha arma. Meus filhos estavam no quintal, que Deus os proteja. Meus amados filhos, minha esposa, minha mãe, eles estavam a salvo”, comenta Boris.
Sua família ficou por três dias atrás da parede de tijolos e das videiras. Ninguém saía à rua, o caos tomou conta da cidade. Em toda parte as pessoas corriam armadas, não era possível distinguir soldados de civis – como saber se também não havia terroristas entre eles? “Alguns escaparam”, conta. “A escola foi cercada pelas forças armadas, eu não entendia a situação, não dormia, não chorava, não comia, deixei de viver por três dias. Tudo parecia vazio, me preocupava apenas com a minha família.”
Foto: Getty Images/Fotobank
Beslan Hoje
Grandes tábuas de madeira bloqueiam as janelas da Escola n°1. Abrimos um portão de ferro e entramos no pátio; o guarda dormia em uma guarita improvisada, e nós o acordamos. Seguimos pelo ginásio em ruínas. Havia uma cesta de basquete em frangalhos e bichos de pelúcia por todos os cantos. Uma grande cruz e garrafas de água vazias.
Passamos pela nova mesquita e por casas antigas rumo ao cemitério. Crianças gritavam, enquanto jogavam futebol. Beslan parece ser organizada. Exploramos a cidade de bicicleta, o asfalto é novo e os telhados são bonitos. “Trata-se de pagamento de indenização”, afirma Boris. Mas a dor não tem preço. Novas janelas de plástico e uma cerca são uma compensação irrisória para crianças, pais, familiares e amigos. “Perdemos muito, mas há futuro para nossos filhos.”
A loja de Boris lhe permitiu enviar a filha mais velha à universidade de São Petersburgo. “Eu estive uma centena de vezes no cemitério visitando amigos. Isso nunca mais vai voltar ao normal. Cada túmulo é um buraco em nossas almas e corações”, diz. “Eles tentaram tapar todos os buracos. Asfalto na estrada, um memorial no ginásio. Uma quadra de esportes em frente às covas e holofotes para clarear a noite. Mas os buracos nas almas são mais profundos. Pode-se perceber isso em Beslan”, continua.
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