Os buracos de Beslan

Mural com fotografias de crianças mortas na Escola n°1 Foto: Panos/Photographer

Mural com fotografias de crianças mortas na Escola n°1 Foto: Panos/Photographer

O calor intenso daquele dia pairava sobre Beslan, na Ossétia do Norte, como uma premonição. Primeiro de setembro de 2004, início do ano letivo. Mais de mil pessoas se reuniam para acompanhar as crianças no início de uma nova etapa de suas vidas. Mas terroristas encapuzados armados com metralhadoras automáticas, lança-granadas e explosivos invadiram e tomaram a Escola n°1. Durante três dias, crianças, pais e professores foram feitos de refém no ginásio da escola. Era para ser um momento de celebração, mas acabou virando palco de explosões e um terrível tiroteio, no qual mais de 300 pessoas morreram.

Exausto e com sede, entro na mercearia de Boris na Prospekt Kosta, em Vladikavkaz, capital da Ossétia do Norte. O calor escaldante não favorece a minha aparência; minha camisa está suja e encharcada de suor. Da sala dos fundos aparece um homem de cabelos grisalhos – Boris. Ele vive em Beslan e vai me guiar por sua cidade.

Dirigimos pelas estepes da Ossétia, deixando os altos picos do Cáucaso para trás. Sento-me em um Lada vermelho sem assentos e com a janela escancarada. Viramos em direção à casa de Boris. Paredes de tijolo com chaminés vermelhas cercam o pátio interno e o jardim com cozinha externa. Videiras sobem pela parede em direção à janela da sala. A mãe de Boris segura minha mão e me agradece por ser seu convidado. “Sente-se, coma. Minha nora, sirva ao convidado e a seu marido”, diz a senhora.

Foto: Robert Neu

Os ossetas não perderam a hospitalidade mesmo depois do atentado terrorista de 2004. “Nós não queremos ficar bêbados, mas a tradição exige”, diz Boris, ao me servir um pouco de bebida. Ele descasca alho, corta o pão e ergue o copo. Entoa uma canção de louvor e do alto de sua hospitalidade me serve com o que tem de melhor. Eu, por sinal, só tinha a oferecer em troca as marcas de barro que meu sapato deixou no chão. Tocado, bebo o que ele gentilmente me serviu, mas meu rosto se altera assim que o amargo da bebida queima a garganta. Depois de três doses, a tradição está cumprida.

“Assim que ouvi os primeiros tiros, assim que os terroristas desgraçados feriram a nossa esperança, nosso futuro, nosso amor, eu peguei a minha arma. Meus filhos estavam no quintal, que Deus os proteja. Meus amados filhos, minha esposa, minha mãe, eles estavam a salvo”, comenta Boris.

Sua família ficou por três dias atrás da parede de tijolos e das videiras. Ninguém saía à rua, o caos tomou conta da cidade. Em toda parte as pessoas corriam armadas, não era possível distinguir soldados de civis – como saber se também não havia terroristas entre eles? “Alguns escaparam”, conta. “A escola foi cercada pelas forças armadas, eu não entendia a situação, não dormia, não chorava, não comia, deixei de viver por três dias. Tudo parecia vazio, me preocupava apenas com a minha família.”


Foto: Getty Images/Fotobank

Beslan Hoje

Grandes tábuas de madeira bloqueiam as janelas da Escola n°1. Abrimos um portão de ferro e entramos no pátio; o guarda dormia em uma guarita improvisada, e nós o acordamos. Seguimos pelo ginásio em ruínas. Havia uma cesta de basquete em frangalhos e bichos de pelúcia por todos os cantos. Uma grande cruz e garrafas de água vazias.

Passamos pela nova mesquita e por casas antigas rumo ao cemitério. Crianças gritavam, enquanto jogavam futebol. Beslan parece ser organizada. Exploramos a cidade de bicicleta, o asfalto é novo e os telhados são bonitos. “Trata-se de pagamento de indenização”, afirma Boris. Mas a dor não tem preço. Novas janelas de plástico e uma cerca são uma compensação irrisória para crianças, pais, familiares e amigos. “Perdemos muito, mas há futuro para nossos filhos.”

A loja de Boris lhe permitiu enviar a filha mais velha à universidade de São Petersburgo. “Eu estive uma centena de vezes no cemitério visitando amigos. Isso nunca mais vai voltar ao normal. Cada túmulo é um buraco em nossas almas e corações”, diz. “Eles tentaram tapar todos os buracos. Asfalto na estrada, um memorial no ginásio. Uma quadra de esportes em frente às covas e holofotes para clarear a noite. Mas os buracos nas almas são mais profundos. Pode-se perceber isso em Beslan”, continua.

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