Ao contrário de Cameron, May não parece nutrir posições ideológicas contra Rússia
ReutersVinte anos atrás, o anúncio de um novo primeiro-ministro britânico teria sido um grande evento, agitando uma série de vozes influentes em Moscou. Mesmo uma década atrás, os editores estariam discutindo o perfil da mais nova residente de Downing Street e inúmeros debate abordariam o impacto disso para a Rússia.
Mas o fato de a reação geral à nomeação de Theresa May ter sido bastante contida serve como parâmetro para perceber que o status da Reino Unido como um importante ator na geopolítica diminuiu.
Pode ser que, com o tempo, a queda de Saddam Hussein seja vista como a última faísca de influência da projeção do poder britânico. Desde que Tony Blair se uniu ao norte-americano George W. Bush na invasão ilegal ao Iraque, em 2003, o Reino Unido entrou em declínio.
Na época, Londres poderia razoavelmente se gabar de ter o segundo Exército mais poderoso do mundo à sua disposição. Porém, a retirada humilhante de Basra em 2007, descrita por figuras militares sêniores dos Estados Unidos como uma derrota, danificou fatalmente a ilusão da contínua competência de combate britânica.
Junho passado, porém, marcou um novo episódio na história recente do Reino Unido. Os britânicos votaram para deixar a União Europeia e, desde então, o mundo assistiu a um país, antes famoso por sua estabilidade, despontar à beira da implosão. Falou-se da saída da Escócia do Reino Unido, da reunificação da Irlanda do Norte a Dublin, e até mesmo de a própria Londres se tornar uma cidade-Estado independente. Paralelamente, a classe política deu origem a situações tão dramáticas de drama que até mesmo Shakespeare teria ficado com uma ponta de inveja e orgulho.
O mundo é um palco
O Partido Trabalhista, que é oposição em Londres, está se dividindo em torno do antigo legado no Iraque deixado pelo ex-primeiro-ministro Tony Blair, mas também pelo fato de que o seu atual líder, Jeremy Corbyn, ser desprezado pela maioria dos parlamentares da sigla.
Paralelamente, todos os principais autores do Brexit, nomeadamente Nigel Farage, Boris Johnson e Michael Gove, desapareceram do holofote por vários motivos: Johnson, depois de ser esfaqueado por este último, embora tenha sido recentemente nomeado ministro das Relações Exteriores, e Farage, que supostamente decidiu passar mais tempo em casa com a sua esposa. Em meio a tudo isso, depois de sua desastrosa jogada ao promover o referendo, David Cameron caiu sobre sua própria espada.
Esta semana, no entanto, o Partido Conservador no poder, enfim, encontrou um novo líder, Theresa May. Desde ontem, passou a substituir Cameron, que se afasta de cena, mas não é perseguido fora do palco por um urso, apesar das tentativas risíveis de alguns veículos britânicos e norte-americanos de insinuar ingerência russa no Brexit.
Embora previsível, dada a identidade dos personagens envolvidos, essa visão era nada menos que absurda. Nem mesmo em seus sonhos mais selvagens, Pútin poderia ter imaginado a Grã-Bretanha se autodestruindo assim. E de tão bom grado.
Mas, talvez, o próprio presidente russo não tenha qualquer opinião formada sobre o assunto. Basta lembrar que, lá em 2013, seu porta-voz, Dmítri Peskov, chegou a descrever o Reino Unido como “apenas uma pequena ilha que ninguém presta atenção”, embora tenha negado a afirmação dias depois.
Apesar das declarações públicas do Kremlin, a afirmação de Peskov reflete, por minha experiência, o verdadeiro espírito da elite de Moscou para com a Grã-Bretanha. Mesmo que Margaret Thatcher tenha sido considerada a segunda figura mais relevante, após Ronald Reagan, em termos diplomáticos, hoje o Reino Unido perdeu sua posto prioritário na Europa sob a perspectiva da Rússia: primeiro para Alemanha e França, e agora pressionado pelo Itália. As razões são inúmeras, mas incluem a polêmica do caso Aleksandr Litvinenko e a frustração do Kremlin em relação a falta de disposição de Londres para lidar com a questão dos bilionários russos no país.
Impacto para o Kremlin
A dúvida que resta agora é se a nova primeira-ministra irá alterar radicalmente a política britânica em relação à Rússia – e a resposta é, provavelmente, não. O Reino Unido, se ainda quiser existir em sua atual forma, irá agora voltar a si mesmo por um longo período. Por isso, a política externa deve se tornar uma preocupação secundária.
As relações com a Rússia serão ditadas por Washington, possivelmente ainda mais do que ao longo da década passada, uma vez que a Otan substituirá a UE como saída de Londres para continuar se envolvendo com os vizinhos da Europa Ocidental.
Em nível pessoal, May não parece nutrir grandes problemas ideológicos em relação à Rússia. Isto contrasta com o desdém estudantil mostrado por Cameron em relação aos países que não necessariamente compartilham os “valores britânicos” – a não ser, é claro, que sejam a China, capaz de investir bilhões de libras na economia do Reino Unido, ou a Arábia Saudita, desejando comprar armas a preços homéricos para usar em bombardeios no Iêmen.
A desconfiança entre Moscou e Londres está tão arraigada que, provavelmente, tornou-se sistêmica. Dito isto, é improvável que May agrave ainda mais esse cenário. A nova premiê se opôs à criação de um inquérito sobre a morte de Litvinenko e, quando o veredito foi anunciado, a sua resposta foi razoavelmente contida. Isso sugere que ela via o caso como algo longe de ser uma questão existencial.
Por outro lado, May apoia firmemente a manutenção do sistema de mísseis nucleares britânico Trident e listou a Rússia como uma “ameaça” ao lado do Estado Islâmico (EI) e da Coreia do Norte. Também é quase certo que, sob o novo governo, a influência britânica na geopolítica será atrofiada. À deriva da UE por vontade própria e com a perspectiva de turbulência econômica nos próximos anos, o país deve perder cada vez mais relevância. Além, é muito possível que, no futuro, May ou seu sucessor sejam conhecidos como premiê da Inglaterra e do País de Gales, deixando o Kremlin aberto a construir uma relação positiva com uma Escócia independente.
Bryan MacDonald é um observador internacional baseado em Moscou.
Publicado originalmente pelo portal Rethinking Rússia
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