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Quando se trata de entender as relações de poder dentro da Rússia, ou as motivações por trás de seus movimentos na política internacional, o Ocidente recorre com frequência às palavras de Winston Churchill, a quem se atribui a definição da Rússia como "uma charada, envolta em um mistério, dentro de um enigma".
Apesar de o Brasil ter poucos acadêmicos especializados em Rússia e não haver, em nossa imprensa, tradição de jornalismo internacional de qualidade que cubra o país, o leitor brasileiro tem acesso a essas análises pelas páginas dos grandes jornais e por alguns programas de TV por assinatura. Geralmente, em tais oportunidades, somos expostos a um discurso que reproduz acriticamente que a Rússia pode ser identificada hora com o desconhecido, hora com o inferior.
Uma das poucas exceções é encontrada nas obras de Angelo Segrillo. O autor não aceita reproduzir estereótipos sobre o país que o abrigou durante seu mestrado, no Instituto Púchkin, em Moscou, no conturbado início dos anos 1990.
Em meio ao aprimoramento de seu domínio do idioma russo, Segrillo testemunhou as transformações radicais pelas quais passou a Rússia durante o fim do socialismo e o início do período de Iéltsin. Essa vivência despertou seu interesse para as causas do declínio da URSS, que posteriormente foi o tema de seu doutoramento em história na UFF (Universidade Federal Fluminense).
Deve-se mencionar que seu trabalho baseou-se na análise de documentos originais em russo, outra raridade no meio acadêmico brasileiro, escasso em especialistas regionais. Atualmente, como professor de história contemporânea da USP, Segrillo é um dos acadêmicos que mais publica sobre a Rússia no Brasil.
Portanto, é no contexto de um país com pouca informação qualificada sobre a Rússia que a obra "De Gorbachev a Putin: a saga da Rússia do Socialismo ao capitalismo", cumpre uma função primordial.
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Ao complementar livro anterior, que tratava do período de Gorbatchov a Iéltsin, o autor coloca a ascensão de Pútin em perspectiva histórica e oferece ao leitor uma nova forma de entender a Rússia atual.
Os oito capítulos correspondem a três fases históricas recentes da Rússia: o fim da URSS, a Nova Rússia e os anos 2000. Para cada período, Segrillo narra com desenvoltura os processos que levaram à ascensão dos principais atores em cada um deles, respectivamente, Gorbatchov, Iéltsin e Pútin.
Esses personagens ganham relevância em meio a uma trama histórica densa, descrita a partir de fatores econômicos, políticos e sociais, e sua interação com o ambiente externo. A análise de cada um desses períodos corrige com propriedade os equívocos reproduzidos a partir de simplificações.
Do conjunto emerge uma Rússia que está longe de ser um mistério, posto que os principais eventos que marcam sua trajetória passam a ser inteligíveis; ou inferior, pois as peculiaridades de sua história não autorizam comparações apressadas com o Ocidente.
Sobre o fim da URSS, Segrillo demonstra que o processo não resultou da vontade de Gorbatchov de liderar a transição ao capitalismo. Pelo contrário, como membro de uma nova elite política que emergia no final dos anos 1980, Gorbatchov compreendia que as mudanças pelas quais o capitalismo havia passado nas décadas anteriores colocavam o modelo econômico soviético em desvantagem em termos relativos, ou seja, embora a economia continuasse crescendo, o crescimento se dava a taxas cada vez menores.
A longo prazo, essa realidade representaria uma ameaça ao projeto socialista. Desta constatação surgiu a Perestroika - ou reestruturação econômica - que pretendia aumentar a produtividade da economia socialista conferindo mais autonomia ao nível local de produção. Por isso a associação entre Perestroika e descentralização.
Por outro lado, para avançar a transformação no monolito político-econômico erigido após a revolução de 1917, algum grau de discussão com a sociedade seria necessário. Esse processo ficou conhecido como Glasnost, ou transparência.
Em meio ao clima de abertura, as manifestações étnico-nacionalistas que ocorriam na URSS de modo esporádico ganharam intensidade e as repúblicas passaram a exigir um novo papel no arranjo da União Soviética. A avalanche de problemas decorrentes comprometeu os resultados econômicos, à medida que Gorbatchov introduzia medidas democratizantes para recuperar sua legitimidade frente à população.
Forças centrífugas, crise econômica e democratização foram os ingredientes que impulsionaram a linha-dura dos militares soviéticos a usar a força para reverter as reformas, em agosto de 1991. Após o fracasso do golpe, Gorbatchov volta ao poder, desacreditado e ofuscado pela ascensão meteórica de Iéltsin.
Os anos Iéltsin
A narrativa de Segrillo sobre o período de Iéltsin segue a mesma densidade analítica. A tônica é a economia, mas aos poucos o leitor passa a acompanhar os reflexos políticos das malfadadas tentativas de implementar o capitalismo na Rússia.
A adesão incondicional de Iéltsin aos princípios da economia de mercado, com a adoção da "terapia do choque" para liberalização dos preços e o programa de "privatização por cupons", afundou o país na pior crise de sua história.
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A radicalização política que se seguiu resultou no ataque militar ao parlamento, onde as forças nacionalistas e comunistas bloqueavam a aprovação de uma constituição favorável ao governo. A partir de então, Iéltsin passou a depender do apoio de uma nova elite russa, os oligarcas, cujo controle sobre os principais setores da economia do país lhes conferia poder político considerável.
À catástrofe dos indicadores econômicos se somaram ameaças separatistas internas, como a eclosão da primeira guerra da Tchetchênia. Sofrendo com as críticas da oposição, Iéltsin abandona sua postura liberal pró-ocidental e se aproxima dos oligarcas para vencer as eleições de 1996.
Seu segundo governo é marcado por escândalos de corrupção recorrentes e pela troca frequente dos primeiros-ministros, dada a complexidade em atender aos interesses de sua base de sustentação. A proliferação de partidos políticos e a influência dos oligargas no governo aumentou a sensação de desamparo da população, que recebera o golpe de misericórdia com a crise do rublo em 1998 e seus efeitos na já cambaleante economia russa.
É nesse contexto conturbado que emerge Vladímir Pútin. De primeiro-ministro pouco conhecido a presidente-interino após a renúncia de Iéltsin foram apenas alguns meses. De presidente interino a presidente eleito, passaram-se alguns outros, marcados pelo início da segunda guerra da Tchetchênia e pela projeção de Pútin como um líder capaz de tomar as rédeas do país.
Essa imagem foi fortalecida na guerra travada contra os oligarcas, forçados a vender o controle acionário de empresas estratégicas ao Estado russo em meio a acusações de irregularidades em sua aquisição e gestão. Além disso, Putin promoveu reformas institucionais que conferiram mais poder a Moscou em detrimento das regiões.
O ressurgimento do Estado na vida econômica e política coincidiu com a alta no preço do petróleo, e em pouco tempo a economia russa voltou a crescer. Os russos, que até então penavam no processo de transição para o capitalismo, viram o projeto liberal ser posto de lado e começaram a desfrutar de estabilidade política e crescimento econômico sob um líder cujo estatismo era a marca central.
Por vezes, essa característica de Pútin é associada ao anti-ocidentalismo. Mais uma vez, Segrillo foge do censo comum e inova ao argumentar, tomando como ponto de partida o debate intelectual russo entre os eslavófilos, euroasianos e ocidentalistas, de que Pútin é, na verdade, um ocidentalista moderado.
Sua opção por ocidentalistas como Medvedev e Euroasianos como Ivanov no governo deriva da necessidade de opções para avançar no caminho que julga melhor para a Rússia.
Pútin é um pragmático. Medidas anti-ocidentais são, muitas vezes, resultados de ações ocidentais tidas como contrárias aos interesses do Estado. Sob essa luz, é possível compreender a ascensão de uma nova classe média no país que pressiona por reformas - as quais, aos poucos, estão sendo atendidas.
O ritmo e a densidade dessas reformas vão depender, em contrapartida, do modo como a elite política russa interpreta as ações ocidentais que afetam o país. A promoção de revoluções coloridas (como na Geórgia) e a derrubada de aliados do governo russo em seu entorno regional (como na Ucrânia) não contribuem para a maior rapidez das mudanças já em curso. Se elas resultarão em retrocessos a ponto de comprometer a nascente e ainda problemática democracia russa, é uma questão que Segrillo deixa para a história responder.
Fabiano Mielniczuk é doutor em relações internacionais pela PUC-Rio, diretor da Audiplo: Educação e Relações Internacionais, e professor da ESPM-Sul
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