Ilustração: Konstantin Maler
Em 1604, o rei espanhol Filipe III sofreu uma queimadura enquanto dormia perto da lareira, porque nenhum homem nobre presente tinha autoridade para movimentar a cadeira do rei. Isso é um bom exemplo dos perigos da especialização excessiva.
O problema é que as reformas educacionais da Rússia apontam para uma extrema especialização a fim de evitar o aprendizado de informações e matérias “desnecessárias”, que supostamente deixam os alunos “sobrecarregados”.
A nova abordagem da educação se concentra em desenvolver “competências” específicas para responder às novas exigências do mercado de trabalho, apesar de o bom senso indicar que uma pessoa com ampla base de conhecimento tende a navegar mais tranquilamente pelas marés de mudança do que alguém que recebeu treinamento altamente específico com base na lista de habilidades “absolutamente essenciais” dos educadores.
Como resultado de todo esse “progresso”, o currículo do ensino médio já perdeu matérias como astronomia, e os oficiais estão arbitrariamente cortando a lista de leitura obrigatória ou diminuindo-a sem prestar atenção na experiência internacional.
O que as autoridades estão chamando de “nova abordagem” é, na verdade, um retorno às noções medievais de que o conhecimento desnecessário causará sofrimento aos estudantes e que o processo de aprendizagem deve focar unicamente no domínio de um ofício específico.
A educação clássica surgiu como uma resposta às condições do mercado cada vez mais complexas, que exigiam dos funcionários decisões autônomas e novas habilidades. A princípio, o objetivo era preparar indivíduos eficazes e capazes de “autocorreção”. Todos deveriam estudar e se aperfeiçoar continuamente ao longo da vida, mas aqueles que tinham uma boa educação básica eram normalmente mais bem-sucedidos.
Os defensores da reforma que falam sobre a “ultrapassada herança soviética” fingem não saber que o sistema que eles pretendem desmantelar foi desenvolvido não pela União Soviética, mas pela Europa Ocidental devido à transição social do feudalismo para o sistema de mercado.
Durante o período de industrialização, a União Soviética pegou emprestado esse sistema educacional totalmente formado e desenvolveu-o à sua própria compreensão. O século 19, que os reformadores modernos consideram tão repugnante, foi exatamente o período em que o conceito moderno de ensino tomou forma. Esse período também foi o ápice do sistema de livre mercado e os anos de ouro do capitalismo.
Embora o currículo soviético tenha assumido a educação clássica e incrementado com matérias ideológicas, tais como História do Partido Comunista e Comunismo Científico, mesmo essas disciplinas ofereciam algum conhecimento de política e sociedade, e não eram totalmente inúteis.
As pessoas que se formaram em escolas e universidades soviéticas receberam ensino de primeiro linha e se destacaram ao se mudarem para o Ocidente na década de 1990. De fato, mesmo quem ficou para trás também foi capaz de se adaptar à economia de mercado, especialmente considerando os enormes transtornos que a Rússia enfrentou após as reformas instituídas pelo economista e ex-vice-premiê Igor Gaidar.
Infelizmente, o mesmo não pode ser dito sobre a geração atual. As massas de trabalhadores “competentes” com especializações restritas podem se tornar um exército de desempregados de uma hora para outra se as condições econômicas e as tecnologias mudarem, o que tornaria suas habilidades e competências inúteis, forçando-os a recomeçar do zero.
De um modo geral, as reformas em andamento colocam a maior parte da população fora de sincronia com o mercado. Elas vão obrigar as pessoas a pagar várias vezes por pacotes segmentados de conhecimento, que, em breve, se tornarão obsoletos em uma economia que passa por rápidas transformações.
Boris Kagarlitski é diretor do Instituto dos estudos sobre a globalização em Moscou.
Publicado originalmente pelo The Moscow Times
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