Amizade com Ocidente não é garantia de democratização

Ilustração: Niiaz Karim

Ilustração: Niiaz Karim

A atual crise na Ucrânia trouxe mais uma vez à tona o debate em torno da escolha de valores implícita na preferência pela União Europeia ou pela integração euroasiática.

Ainda no período das “revoluções coloridas”, o desejo das ex-repúblicas soviéticas de escapar da geografia por meio da construção de laços com a UE, EUA e Otan, foi entendido por uma parte significativa dos especialistas, tanto no Ocidente quanto na Eurásia, como um pré-requisito importante para a sua democratização.

Paralelamente, a cooperação estratégica com a Rússia era vista como sinônimo de prolongamento do autoritarismo e do sistema arcaico que as governava. Mas é certo afirmar que, nos dias de hoje, esse regime é aplicável aos processos políticos pós-soviéticos?

As prioridades de política externa e a escolha de valores são geralmente baseadas na ideia de que a diplomacia dos principais atores internacionais se constrói sobre princípios ideológicos. Não há dúvidas de que na retórica dos EUA e da Europa o mercado e a democracia ocupam o lugar principal, enquanto os políticos russos preferem falar de estabilidade, conservadorismo do direito internacional e primazia da soberania nacional sobre a interferência externa. Mas, na prática, a retórica e os interesses nacionais nem sempre se cruzam.

O “contrato do século”, assinado entre o Azerbaijão e as grandes empresas petrolíferas ocidentais em 1994, tal como a participação deste país do Cáspio em projetos energéticos apoiados pelo Ocidente, do tipo Baku-Tbilisi-Ceyhan, não o tornaram líder em termos de valores democráticos. Aliás, este é o único país entre as ex-repúblicas soviéticas onde o poder passou de pai para filho. Por outro lado, o Azerbaijão nunca fez parte da OTSC e não pretende aderir à União Aduaneira.

No mesmo grupo pode também ser incluído o Uzbequistão, cujo presidente, Islam Karimov, governa sozinho o país sozinho há 22 anos. O autoritarismo não impediu Tachkent de ser considerado uma “parceira valiosa da Otan” no âmbito da operação no Afeganistão. Aliás, no ano passado, a república suspendeu a sua participação na OTSC e, tal como o Azerbaijão, não faz intenção de se juntar à União Aduaneira.

Durante muito tempo, a mídia ocidental apresentou a Geórgia como o “farol da democracia”. No entanto, após as polêmicas dispersões das manifestações em Tbilisi em 2007 e 2011, bem como com a publicação de materiais sobre a violência no sistema prisional do país, a imagem de Mikheil Saakashvili como um democrata avançado da antiga União Soviética, despencou. Por sinal,  Geórgia não tem relações diplomáticas com a Rússia desde 2008 e, mesmo antes disso, Tbilisi era um dos parceiros mais problemáticos de Moscou.

Enquanto isso, muitas das ex-repúblicas da URSS estão se esforçando para não ter que fazer uma escolha entre o Ocidente e a Rússia. Alguns conseguem melhor (Cazaquistão, Uzbequistão), outros, pior (Armênia, Ucrânia). Mas as questões da escolha de valores são, nesse contexto, colocadas em segundo plano. O desenvolvimento de contatos com a Otan ou União Europeia não dá qualquer garantia nem de aceitação futura nas fileiras dessas estruturas nem de edificação da democracia.

Recentemente, muitos observadores falaram do “sonho europeu perdido da Ucrânia”. Mas, na realidade, o acordo de associação com a UE não permitiria fazer cair nem mesmo o regime de isenção de vistos. A Europa tem acordos semelhantes com vários países do Norte da África e do Oriente Médio (Argélia, Egipto, Jordânia, Tunísia).

De um modo geral, trata-se de uma tendência estranha – a de viver na expectativa de que algum benfeitor externo virá fazer todo o trabalho duro no lugar do próprio país. Infelizmente, muitos líderes pós-soviéticos substituíram a antiga imagem de PCUS generoso e equitativo por uma ideia igualmente glamorosa do papel auspicioso de Bruxelas e Washington.

Mas a vida real não se rege por um esquema. E, para compreender os processos geopolíticos complexos na antiga União Soviética, será pouco improvável que se aconselhe alguém a substituir o esquema linearmente progressivo do arsenal do “comunismo científico” pela “democracia científica”, que estabelece a dependência artificial dos interesses nacionais a uma escolha de valores quase existencial.

A Eurásia de hoje já não se parece em nada com as ex-repúblicas soviéticas do começo da década de 1990. Além da Rússia, atuam aqui muitos players novos, e elas mesmas diferem cada vez mais entre si na relação de interesses. Mesmo as três repúblicas do Cáucaso deram três respostas diferentes à escolha entre a integração europeia ou euroasiática.

Mas essa escolha em si é muito mais complexa do que a obediência a um determinado esquema retórico. E quanto mais cedo os especialistas e profissionais se derem conta disso, mais fácil vai ser se abster de expectativas desnecessárias, inevitavelmente repletas de frustrações.

 

Serguêi Markedonov é cientista político e ex-pesquisador convidado do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em Washington

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