Illustração: Iólkin
A história é grotesca e ofensiva. Mas quando foi que músicos de bandas alternativas tocaram certinho e bajularam o público? A história do movimento punk começou com ofensas dos Sex Pistols à rainha da Inglaterra e obscenidades que disseram em uma transmissão ao vivo. Johnny Rotten e seus amigos logo receberam uma resposta: os músicos foram brutalmente espancados na rua e a gravadora rescindiu seu contrato.
Com o Bloodhound Gang se deu algo parecido. Na cidade russa de Anapa, à beira do mar Negro, eles foram recebidos com uma chuva de ovos podres no aeroporto, dois cossacos tentaram espancá-los e os seus shows no país foram cancelados.
No caso do Sex Pistols, o Estado não interveio no conflito. Já a polícia de Anapa, conforme noticiou a agência Interfax, enquadrou as ações do baixista dos Bloodhound Gang, Jared Hasselhoff, no artigo 329 do Código Penal, sobre a “Profanação do emblema nacional da Federação Russa ou da bandeira nacional da Federação Russa”.
O artigo prevê até um ano de prisão. Além disso, deputados começaram a comentar que o ato do baixista teria sido um ato russofóbico. Para consolar os legisladores, vale lembrar que não é só da Rússia que o Bloodhound Gang não gosta. Segundo noticiou o site Vesti.ru, um dia antes do ocorrido eles urinaram na bandeira da Ucrânia durante um show em sua capital, Kiev.
Por tal ato, a lei ucraniana prevê uma pena de até seis meses de prisão ou uma multa que pode chegar a 850 hryvnil” (cerca de R$ 250). Mas a Justiça ucraniana ignorou o incidente e o público acabou caindo na risada sobre o caso.
É tudo uma questão de saber quem e onde provocar. Kiev é uma grande cidade, uma capital. Já Kuban, que cancelou o show do Bloodhound Gang, é o “Texas russo”, uma das regiões mais conservadoras e patrióticas do país. Lá, eles não gostam da oposição, dos homosexuais e de quem não for “russo étnico”.
Se punks russos se limpassem com a bandeira norte-americana no Texas, também sofreriam consequências. Outra coisa seria em Nova York, que, tal como Moscou ou Kiev, já viu muita coisa. Por isso, russofobia não tem nada a ver com o caso. O
Bloodhound Gang já chegou até a escrever um hino-paródia para a Pensilvânia, estado natal de seus integrantes.
Assim é esse gênero do rock alternativo. É uma música perigosa, que nasceu no mundo do crime. Metade dos pioneiros do blues era de foras da lei. Até o grande Elvis, que bambeava os quadris no palco, era tido como um perturbador da ordem pública.
Todo roqueiro soviético foi acusado de organizar shows ilegais, de compor canções antissoviéticas etc. Era o rock’n’roll ganhando força.
Com o tempo, os tabus vão diminuindo. O escandaloso rapper Eminem se viu em uma situação difícil depois de ofender homossexuais, negros, mulheres, políticos e até a própria mãe. Em seguida recebeu 13 prêmios Grammy.
Por que agem assim esses músicos? Simples: para trazer à tona emoções fortes, despertar a humanidade. Na antiga Rus, era mais ou menos esse o papel dos tolos, esses primeiros punks russos que diziam as coisas mais desagradáveis e ofensivas do mundo. Dançavam de modo obsceno e cantavam blasfemando.
Mas o ser humano se acostuma com tudo, e aquilo que outrora incomodava a consciência, com o tempo deixa de incomodar. O grupo russo Leningrad, que no início deste século chocava o público com suas canções obscenas, é hoje bastante aceito.
São poucas as bandas fulminantes, e serão cada vez menos. Os anos 1990 e a primeira década do nosso século foram anos de protesto decorativo e comercial. Insultar, mas para que todos entendam que é uma piada. “São muito poucos os verdadeiramente tempestuosos”, como cantou Visótski. Por isso o público reagiu de modo tão turbulento à performance das Pussy Riot na Catedral de Cristo Salvador. Tocando em um dos pontos mais nevrálgicos da sociedade russa, o sentimento religioso, elas pagaram com ostracismo e prisão.
Os Bloodhound Gang invadiram um território não menos sagrado: um símbolo da soberania nacional. Mas pior insulto para eles teria sido, provavelmente, se a sociedade não notasse o ato de seu baixista. O que aconteceu, então, pode ser comparado a entusiásticos aplausos.
Ian Chénkman é critico musical e trabalhou na Nôvaia Gazeta e na revista Ogoniok.
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