Ilustração: Dan Potótski
Em janeiro deste ano, o editor-chefe do canal de TV financiado pelo Kremlin “Kontr-TV”, Anton Krasovski, fez uma declaração polêmica ao vivo. “Sou gay, e eu sou exatamente como vocês , meu querido público, como o presidente Pútin, como o primeiro-ministro Medvedev, e como todos os deputados da nossa Duma [câmara dos deputados na Rússia]”, disse. Não é possível encontrar o vídeo em mais nenhum lugar na internet – foi excluído do site da “Kontr-TV”, juntamente com a conta e páginas corporativas sobre o editor. Se não fosse o bastante, Krasovski foi obrigado a deixar o cargo três dias depois. Em sua próprias palavras, ninguém deu tanta atenção à sua confissão, mas todos deram ênfase à frase “sou como vocês”.
Seja como for, seria hipocrisia afirmar que Krasovski foi demitido apenas por causa de sua orientação sexual. Foi a declaração de igualdade que deixou os chefes de Krasovski furiosos. Diversos gays russos são bem sucedidos trabalhando em meios de comunicação, bem como em outras esferas sociais, mas para muitos deles “sair do armário” está fora de questão. Na Rússia contemporânea, os gays ainda são marginalizados na sociedade.
De acordo com pesquisas realizadas pelo instituto de pesquisa Centro Levada em abril passado, os russos consideram a homossexualidade uma doença (35%) ou mau hábito (43%), enquanto apenas 12% acreditam que ser homossexual é “normal”. Sobre os direitos dos homossexuais serem iguais aos dos heterossexuais, 47% votaram contra, e 39% foram a favor da igualdade. Mas para entender de onde vem essa atitude, basta fazer uma pequena viagem ao passado do país.
Na Rússia antiga, as relações sexuais entre homens era condenada pela Igreja, mas sem grandes penitências. O julgamento desses casos não era diferente dos vícios de natureza heterossexual. As menções ao romance entre gays em fontes medievais são raras, mas existem. Entre os séculos 15 e 17, as relações homossexuais do sexo masculino se tornaram mais comuns entre os jovens da nobreza. Mesmo o tsar Ivan IV tinha se envolvido com jovens nobres, como Fiódor Basmanov, aos seus 20 e poucos anos. A homossexualidade masculina existia em todos os níveis da sociedade e não era tratada como um crime. Os sacerdotes da Igreja Ortodoxa Russa, que não evitavam que jovens nobres do final do século 17 raspassem a barba e usassem maquiagem e perfume, passaram a ser cada vez mais responsabilizados pela disseminação da homossexualidade. O historiador Serguêi Soloviev disse mais tarde que “em nenhum lugar do Oriente ou Ocidente esse pecado era encarado de forma tão leve como na Rússia”.
As primeiras penas para as relações homossexuais foram introduzidas no Exército russo em 1716 por Pedro, o Grande. Os infratores era submetidos a um castigo corporal, e ao exílio em caso de estupro de alguém do mesmo sexo. Para a nobreza russa do século 18, o sexo entre pessoas do mesmo sexo não era incomum. No século seguinte, com o aumento das relações russo-europeias, o povo russo aprendeu que em outros países a homossexualidade era geralmente vista como um crime, o que os forçou a começar a esconder o seu comportamento sexual. Ainda assim, era uma prática bastante comum entre artistas, poetas e pessoas relacionadas ao Estado, incluindo o príncipe Aleksandr Golítsin, e era encarada com ironia em vez de condenação. Também é importante lembrar que a maioria dos jovens nobres tinham sido educados em escolas militares privadas, onde a homossexualidade era mais uma regra do que uma exceção.
Em 1832, sob o governo de Nicolai I, foi introduzida a primeira cláusula penal para as relações homossexuais: o exilo na Sibéria. Porém, essa norma quase foi nunca aplicada, já que qualquer caso do gênero representaria um escândalo e nenhum membro da nobreza queria ter o nome envolvido em tais histórias. No final do século, a legislação antigay praticamente deixou de existir, e as relações de pessoas do mesmo sexo floresciam nos círculos boêmios e na mais alta nobreza, incluindo a família real. Após a revolução de 1905, acabou a censura literária, permitindo que homossexuais pudessem se expressar em poesias e prosas.
Com a Revolução Bolchevique e o estabelecimento da União Soviética, a guerra em torno da homossexualidade virou um assunto de preocupação do Estado. Em 1934, a sodomia foi considerada crime novamente, com penas de 5 a 8 anos. A homossexualidade foi declarada um “vício burguês” que deveria ser totalmente erradicado, conforme a teoria das classes utilizada pelos bolcheviques durante a construção do Estado soviético.
O preconceito social contra os gays na URSS cresceu junto com a perseguição jurídica. Em uma sociedade conduzida por ideologias, onde os valores comunistas eram ensinados às crianças desde cedo, a homossexualidade foi totalmente proibida. Enquanto isso, nos presídios e colônias, a homossexualidade se tornou uma marca do abandono; o estupro de pessoas do mesmo sexo era usado para humilhar os recém-chegados e punir quem ousasse quebrar as regras não oficiais da prisão. Quando libertos, os ex-presidiários carregavam esse estigma na sociedade, o que inevitavelmente levava à percepção de que os homossexuais eram inferiores.
Até hoje, os órgãos de segurança do Estado ocultam os dados reais sobre a quantidade de pessoas condenadas por manter relações homossexuais. O pesquisador americano Dan Healey afirma que os dados entre 1934 e 1950 estão incompletos, e os dados de 1951 a 1960 sequer existem. A partir de 1961, as estatísticas oficiais mostram que cerca de mil pessoas por ano foram condenadas sob o artigo 121 do Código Penal da URSS de 1960, com um pequeno aumento a cada ano. No total, 22.163 pessoas foram condenadas entre 1961 e 1981. Durante os anos 1980, esse número diminuiu, e em 1993 o artigo 121 foi abolido.
A situação ficou mais tranquila por um tempo, e a opinião pública começou a amolecer. Segundo pesquisas realizadas pelo Centro Levada em abril de 1998, 18% dos entrevistados consideravam a homossexualidade como sendo “normal”; a partir de 2005, esse número aumentou para 20%. No mesmo ano, 51% dos entrevistados disseram que os direitos dos gays deveriam ser iguais aos dos heterossexuais. Mas, nos anos seguintes, a propaganda antigay cresceu novamente com a ajuda da Igreja Ortodoxa Russa pós-soviética. Ser gay voltou a ser um pecado, assim como nos tempos medievais.
De um modo geral, as medidas antigay expostas anteriormente foram tomadas durante o governo de líderes autoritários, que tinham o objetivo de minimizar a diversidade e instaurar tolerância zero a qualquer tipo de cidadão que não seguisse as normas sociais impostas. Atualmente, os novos atos legislativos contra a “propaganda gay” e o casamento homossexual vêm sendo apoiados por uma retórica antigay disseminada pelos meio de comunicação pró-Kremlin. Ainda paira no ar a sombra daqueles sentenças do passado.
Gueórgui Manaev é um historiador que vive em Moscou.
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