“Já faço tatuagens há dez anos. Eu desenhava muito, depois comecei a tatuar também. A vida de tatuadora é bem divertida, comunicativa, despreocupada. Sempre tem alguém frequentando o estúdio, cliente agradecido insistindo para a gente ir a alguma festa.
Resumindo, viver ali é uma festa. Mas me deparei com um artigo sobre a tatuadora brasileira Flávia Carvalho, que cobre cicatrizes de vítimas de violência doméstica, e pensei: por que não tentar eu mesma fazer isso?
Evguênia já tatuou mais de uma centena de mulheres nessa situação na Bachquíria / Foto: Vadim Braidov
Vivendo no meu mundinho pacífico e feliz, eu não podia imaginar que tantas mulheres estão sujeitas à violência doméstica. Já recebi cerca de 100 clientes e entendo que elas vêm, principalmente, para contar suas histórias, derramarem essas histórias no divã. Isso tudo para quando se levantam dele não lembrar nunca mais.
Escutei tantas histórias que dava para escrever um livro. Tento ser amiga delas – e acho que consigo, pois muitas vêm, me trazem doces, ou aparecem só para bater um papo.
Elas me dizem: ‘Você nos fez sentir dor por uma hora para que nós esquecêssemos da dor que suportamos por anos’.
"Escutei tantas histórias que poderia escrever um livro. Elas vêm, sentam no divã e desabafam, para quando se levantarem não lembrarem nunca mais" / Foto: Vadim Braidov
Recebi cartas de todos os cantos da Bachquíria. Mais jovens ou mais velhas, calmas ou nervosas, todas se unem em uma coisa: a dor. Cada uma delas me disse que não consegue olhar para suas cicatrizes, que elas lhes lembram o dia em que seus companheiros levantaram a mão para elas.
Apesar de eu cobrar entre dois e quatro mil rublos por tatuagem (entre R$ 100 e R$ 200), não posso receber dessas mulheres. Foi assim que meus pais me criaram.
Quem tiver dinheiro pode pagar, mas do contrário não. Ainda tenho muitas clientes para esse serviço. Infelizmente, a violência é como uma guerra: eterna.”
Cicatrizes e histórias das clientes de Evguênia
Viktoria
Viktoria escolheu com Evguênia fazer uma borboleta, o símbolo da reencarnação / Foto: Vadim Braidov
“Em 2009, meu ex-marido e um amigo me pegaram no trabalho e me levaram para um bosque. Eu estava grávida... Os médicos me trataram por um longo tempo e conseguiram salvar a mim e ao bebê.”
O marido de Viktoria a espancou com um amigo em um bosque. Ela estava grávida / Foto: Vadim Braidov
“Conversei com a Evguênia e resolvemos fazer o desenho de uma borboleta, o símbolo da reencarnação da alma para muitos povos. Hoje de manhã encontrei um buquê de rosas sem cartão na grade da janela. Acho que é um bom sinal.”
O ex-marido de Viktoria foi condenando à prisão e, quando saiu, foi assassinado em uma briga enquanto estava alcoolizado.
Lília
As cicatrizes de uma queimadura na infância sempre incomodaram esta cliente de Evguênia / Foto: Vadim Braidov
“Quando eu tinha um ano e dois meses, sofri queimaduras com água fervente, tive 84% do meu corpo e fiquei um mês em coma. Não posso ter filhos. Nos anos 1990, resolvi fazer uma série de operações plásticas e fiquei com diversas cicatrizes. Essa tatuagem mudou minha vida, porque agora não tenho nada de que me envergonhar. Eu sou o que sou.”
Guldar
Espancada pelo noivo, esta cliente desenvolveu tumores. Da cirurgia, restaram as cicatrizes / Foto: Vadim Braidov
“Há sete anos, conheci um moço. Já planejávamos registrar o casamento. Um dia ele chegou em casa bêbado e me bateu, me chutou nos seios e na barriga. Eu peguei minhas coisas e fui para a casa da minha mãe, depois mudei de cidade.”
As marcas na pele a partir de então se tornaram uma barreira para que ela encontrasse um novo amor / Foto: Vadim Braidov
“Depois de um ano, as pancadas ainda doíam: no peito e na barriga continuavam hematomas e tumores. Operei. Agora tenho essas cicatrizes aqui e não posso ter filhos. Não posso construir uma relação com outro homem. Tenho muita vergonha de me despir na frente de qualquer pessoa, de contar essa história. Eu queria poder colorir todas minhas lembranças com tatuagens.”
Liaissan
O marido de Liaissan a esfaqueou, mas ela resolveu lhe dar uma segunda chance / Foto: Vadim Braidov
“Há dois anos, meu marido, doido, me esfaqueou com uma faca de cozinha. As facadas foram profundas, atingiram meu fígado e tive hemorragia interna. Sou grata aos médicos, mas fiquei com cicatrizes muito grandes.”
Ela não denunciou o marido. Foto: Vadim Braidov
“Não abri boletim contra meu marido. Ele pediu para voltar, eu tentei viver com ele ainda por um tempo, mas não pude. Ele não reconhece sua culpa, diz que não lembra de nada e que eu me esfaqueei sozinha.”
Com a tatuagem, ela espera superar o terrível dia em que foi esfaqueada / Vadim Braidov
“Depois disso, eu me arrependi de não ter aberto boletim. Mas acho que tudo que vai, volta nessa vida. Agora está tudo bem na minha vida, mas as cicatrizes não me deixam superar aquele dia terrível. Por isso resolvi fazer uma tatuagem.”
Nádia
Namorado de Nádia apagou cigarros no seu corpo e a cortou / Vadim Braidov
“Minha convivência com meu companheiro nunca foi fácil. Mas um dia ele ultrapassou todos os limites. Ele me pegou, me apertou contra a cama e começou a apagar cigarros em mim. Com uma faca de papelaria, cortou minhas mãos. Foi preciso cinco sessões de tatuagem para vencer todas as cicatrizes – e algumas ainda persistem.”
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