"A contenção política da Rússia está sendo levada a cabo desde o século 18. Não gostam de que a Rússia cresça, expanda-se territorialmente", diz Konstantin Kamenev Foto: Fernando Pastorelli
O cônsul-geral da Rússia em São Paulo, Konstantin Kamenev, é homem de opinião. Entre um e outro gole de café em seu gabinete no consulado, em São Paulo, ele afirma que o governo Pútin não teme as sanções de Obama e Merkel: “Podemos reorientar nossos laços econômicos externos completamente. Buscar e achar outros parceiros. Por exemplo, o Brasil”.
GR: Como eram as relações entre Rússia, Ucrânia e Crimeia antes da crise?
KK: O relacionamento russo-ucraniano era amistoso. Nosso presidente estava em constante contato com o presidente constitucionalmente e legitimamente eleito Víktor Yanukovitch. Tivemos uma ampla linha de cooperação econômica nas esferas de investimentos, técnico-científica, diplomática e até política. Nem pensávamos sobre a Crimeia ou sobre alguma ação contra Ucrânia um mês atrás, quando estávamos concentrados na preparação das Olimpíadas de Inverno e concedemos uma linha de crédito para resgate da economia da Ucrânia no valor de 15 bilhões de dólares. Já tínhamos concedido, em fevereiro passado, 3 bilhões de dólares, a primeira parte desse crédito. Depois estouraram os acontecimentos em Kiev. Não fomos nós quem abriu essa caixa de Pandora: essa praça de Kiev, protestos violentos, manifestantes de extrema-direita, antissemitas, russófobos...
GR: De onde eles vieram?
KK: Essa gente foi orquestrada de algum lugar. Suspeito que de um lugar distante da Ucrânia, e distante no sentido do Ocidente. O presidente democraticamente eleito por voto direto e secreto, Víktor Yanukovitch foi afastado do poder, apesar de todos os acordos assinados na presença dos chanceleres da França, Alemanha e Polônia. Isso foi da noite para o dia, num instante.
GR: O serviço secreto russo detectou que ele seria derrubado?
KK: Não faço parte do serviço secreto russo, mas posso imaginar que o presidente Pútin tenha sido informado pelos agentes do serviço secreto sobre os acontecimentos reais que se desenrolavam na Ucrânia. Mas nem ele, Pútin, poderia ter ideia de que sua evolução seria tão aguda e tão grave, porque continuávamos com a cooperação econômica, as conversas telefônicas com Yanukovitch. Mas esse também tem culpa devido a sua inércia, inaptidão de empreender coisas, melhorar a vida da gente.
GR: Seu desfecho me lembrou, guardadas as devidas proporções, o caso João Goulart no Brasil...
KK: Jango foi semelhante, sim. Yanukovitch foi afastado do poder no fim de fevereiro, se refugiou no Sul da Rússia...
GR: Fugiu.
KK: Fugiu!
GR: Há alguma chance de ele retornar ao poder?
KK: A minha avaliação é que tem uma pequeníssima chance, que equivale a zero. Mas ele declarou ter intenção de voltar à Ucrânia. Ele continua sendo o presidente legítimo dessa nação, segundo as autoridades russas, porque foi o escolhido em eleições cujos resultados não foram devidamente anulados até agora. Seu mandato não foi revogado legitimamente, segundo as regras do Direito Internacional, isso é bem evidente.
GR: Como a Crimeia entrou nessa história?
KK: A Crimeia foi conquistada pela Rússia em guerra com a Turquia. Muito sangue russo foi derramado no solo da Crimeia. Em meados do século 19 houve uma grande guerra, quando Turquia, França e Inglaterra tentaram apoderar-se da Crimeia e muitos soldados e oficiais russos lá pereceram. Até o conde e escritor Lev Tolstói participou da campanha na Crimeia.
Durante o século 20 essa terra sempre pertenceu à Rússia, assim como a cidade de Sevastópol, que é o ponto mais importante da frota da marinha de guerra russa no Mar Negro desde o século 18.
O que é mais importante é que Sevastópol sofreu muito na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, quando as tropas nazifascistas tentaram apoderar-se de dela. A cidade foi proclamada a glória militar dos combatentes russos.
Se analisarmos de maneira objetiva, a população da Crimeia é de 2 milhões e 200 mil habitantes. Mais de 1 milhão e meio são russos, 350 mil ucranianos e outros 300 mil são os chamados tártaros da Crimeia. Os ucranianos ali se instalaram somente depois da Segunda Guerra Mundial.
GR: Foi ideia de Khruschov?
KK: Sim, a ideia foi do líder soviético Nikita Khruschov, que também nasceu na Ucrânia. Ele chegou ao poder em 1953 e, em 1954, quando se celebravam 300 anos da união entre Rússia e Ucrânia, ele cedeu a Península da Crimeia à então República Soviética Socialista da Ucrânia.
Isso irritou a gente da península, mas tudo foi feito no âmbito de um grande e único país, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Então, o povo dizia: “Deram-nos aos ucranianos como quem dá um saco de batatas ao outro”.
Mas não havia motivos para alarme. Porém, quando se dissolveu a União Soviética, em 1991, a população da Crimeia sentiu-se completamente desconectada, sem um ponto de convergência. A Ucrânia não cuidou dela, não lhe deu garantias sociais, e os governantes estavam mais atraídos pela corrupção. Ela se sentiu abandonada. Muita gente emigrou para a Rússia, mas essa estava enfraquecida então, nos anos 1990, quando também estava ocorrendo a Guerra da Tchetchênia, no Cáucaso russo. Foram anos muito difíceis de transição.
GR: Por que Khruschov fez isso?
KK: Na minha opinião, e na de Pútin também, Khruschov fez isso por duas razões. Uma era fortalecer-se aos olhos de grandes nomes soviéticos, que então incluíam muitos marechais ucranianos, como Malinóvski, Gretchko... Além disso, foi um ato de remição pelas atrocidades cometidas pelo poder bolchevique nos anos 1920 e 1930 contra os ucranianos. Na minha opinião, Khruschov fez isso movido pelo desejo de fortalecer seu poder pessoal, depois da luta interna que ocorreu no partido com a morte de Iossif Stalin.
GR: E por que essa reação de Obama e de Angela Merkel? A Crimeia torna a Rússia muito mais forte?
KK: Isso também foi destacado no apelo do presidente Pútin ao parlamento russo, no dia 18 [de março de 2014]. Faz parte da política de contenção onipotente da Rússia.
GR: Medo de que volte a União Soviética?
KK: Sim. A contenção política da Rússia está sendo levada a cabo desde o século 18. Não gostam de que a Rússia cresça, expanda-se territorialmente. Isso provoca ódio e indignação e irritação, não sei por quê. Mas não tememos essas sanções porque podemos reorientar nossos laços econômicos externos completamente, buscar e achar outros parceiros, por exemplo, o Brasil.
Temos com esse relações de parceria estratégica, e nos últimos cinco anos foram diversas as visitas oficiais mútuas de nossos presidentes. O presidente Pútin deverá, ainda, vir à final da Copa, em 13 de julho, no Rio de Janeiro, já que a Rússia será o país sucessor do torneio, e em seguida, no dia 15, deverá participar da cúpula dos Brics em Fortaleza.
Há uma comissão intergovernamental de cooperação econômica e técnico-científica, uma comissão de alto nível... Nossa meta é atingir, nos próximos dois a três anos, os 10 bilhões de dólares na balança comercial bilateral com o Brasil, que hoje varia entre 6 e 7 bilhões de dólares.
Além disso, temos projetos de perspectiva na área da exploração do espaço. Em energia hidrelétrica, as hidrelétricas de Sobradinho e Capivara, por exemplo, foram construídas com nossas turbinas até os anos 1970 e 1980, e hoje temos em São Paulo a representação da companhia russa Power Machines, que fornece turbinas hidrelétricas ao Brasil. Na esfera automobilística, a brasileira Marcopolo atua com sucesso em Tartaristão, na planta da Comass, onde produz seus ônibus brasileiros para o mercado russo.
Há muitos outros exemplos. Mas também temos sinergia, russos e brasileiros. Na esfera cultural, educacional, há grande espaço para cooperar de agora em diante.
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