O comandante mais lendário do Exército Vermelho

História
BORIS EGOROV
Ióssif Stálin e a propaganda soviética fizeram de Vassíli Tchapaev um ídolo do povo e um herói semimítico — que foi parar até nos games modernos. Mas quem era ele realmente?

Ao questionar um russo ou cidadão de qualquer outro país da ex-União Soviética quem ele considera o comandante mais lendário do Exército Vermelho, na maioria dos casos, a resposta será a mesma: Vassíli Tchapaev. Ao mesmo tempo, por incrível que pareça, é bem provável que o entrevistado não conheça qualquer detalhe da biografia do famoso líder militar, não tenha assistido ao filme dedicado a ele nem tenha lido o romance sobre sua vida.

Vassíli Ivánovitch Tchapaev (também grafado como Chapaev em português) não era um grande comandante soviético e, apesar de sua coragem pessoal, não realizou façanhas excepcionais que poderiam impressionar.

Afinal, como um simples comandante de divisão da Guerra Civil russa se tornou não apenas um ídolo de sua geração, mas agora, depois de 100 anos, seu nome ainda não foi esquecido na Rússia?

Herói de duas guerras

A carreira militar de Vassíli Tchapaev (cujo sobrenome verdadeiro era Tchepaev) começou durante a Primeira Guerra Mundial, quando ele ascendeu do soldado ao posto de feldwebel e recebeu três Cruzes de São Jorge. Em setembro de 1917, às vésperas da Revolução de Outubro, Tchapaev se juntou aos bolcheviques.

De origem camponesa, com rica experiência de combate e excelentes qualidades de liderança, Tchapaev fez uma impressionante carreira no Exército Vermelho. Durante a Guerra Civil, passou de comandante de regimento a comandante de divisão.

Mais tarde, a propaganda soviética retrataria Tchapaev como um cavaleiro corajoso. Na verdade, ele jamais comandou a cavalaria — apenas a infantaria — e, devido a um ferimento sofrido durante a Primeira Guerra Mundial, não podia andar de cavalo por muito tempo e preferia carros ou motocicletas.

Na primavera e no verão de 1919, Tchapaev participou de operações militares contra o exército branco de Aleksandr Koltchak na região do Volga e no sul dos Urais. Os bolcheviques conseguiram deter o avanço do inimigo e também capturar o grande centro industrial de Ufá. As unidades da 25ª Divisão de Infantaria, comandadas por Tchapaev, foram as primeiras a invadir a cidade.

Tchapaev também participou das repressões às revoltas camponesas contra a política e campanha de confisco de cereais e outros produtos agrícolas dos camponeses a preços nominais fixos para as necessidades do Estado. A propaganda preferiu não se lembrar desses detalhes ao celebrar sua imagem.

Morte

A morte continua sendo o episódio mais misterioso da biografia de Tchapaev, já que suas circunstâncias são desconhecidas até hoje.

Em 5 de setembro de 1919, cerca de um mil de cossacos brancos realizaram uma operação ofensiva ousada na retaguarda do Exército Vermelho e atacaram repentinamente o quartel-general da divisão de Tchapaev na cidade de Lbischensk (atual vila de Chapaev, no Cazaquistão). “Antes do amanhecer, o inimigo se aproximou de Lbischensk por três lados. Do quarto, oriental, está o rio Ural. As linhas telefônicas e telegráficas de comunicação com as tropas [...] foram cortadas. Alguns dos cossacos locais percorreram as ruas para [...] semear o pânico e a morte”, lê-se no livro “Tchapaev. Ensaio sobre a vida, atividades revolucionárias e militares”, escrito pelos filhos do comandante.

As forças vermelhas sofreram uma grande derrota: cerca de 1.500 pessoas foram mortas na cidade, 1.000, nas estepes ou afogadas no rio Ural enquanto tentavam escapar. De acordo com a versão oficial, foi assim que o famoso comandante morreu — ele teria sido atingido por uma bala inimiga no meio do rio. Segundo outra versão, o ferido Tchapaev foi transportado de barco para a outra margem, onde morreu. Também acredita-se que foi capturado e executado. Os restos mortais de Tchapaev jamais foram encontrados.

Nascimento da lenda

A morte de Tchapaev não foi um evento extraordinário, muitos famosos líderes militares morreram durante a guerra. No entanto, em 1923, ocorreu um evento que glorificou Tchapaev: a publicação do romance “Tchapaev”, de Dmítri Fúrmanov, sobre as façanhas do bravo comandante da divisão. O autor, comissário da 25ª Divisão de Infantaria, conhecia bem o herói do seu livro.

Curiosamente, Fúrmanov e Tchapaev não eram melhores amigos. Pelo contrário, eles tiveram um sério conflito devido a um episódio envolvendo a esposa do comissário. “Comecei a desprezá-lo há poucos dias, quando me convenci de que você é um carreirista, e quando vi que os molestos são especialmente descarados e insultam a honra de minha esposa”, escreveu Fúrmanov a Tchapaev. “Seus toques nela me deixaram com uma sensação nojenta. A impressão foi como se um sapo tivesse tocado uma pomba branca.”

Pouco antes do massacre em Lbischensk, Fúrmanov deixou o local da divisão, o que salvou sua vida. Há evidências de que antes de partir os inimigos se reconciliaram, e a imagem heróica de Tchapaev que o escritor criou em seu romance serve como confirmação disso.

Para dar mais sonoridade, Fúrmanov mudou uma letra do sobrenome verdadeiro do comandante, transformando “Tchepaev” em “Tchapaev”. O novo sobrenome se enraizou tanto que foi consagrado em nível oficial. Até os filhos do comandante da divisão tiveram que alterar seus documentos.

Herói nacional

Em 1934, foi lançado nos cinemas soviéticos um filme sobre Tchapaev que o tornou herói nacional. O longa-metragem “Tchapaev” é baseado no romance de Fúrmanov, que havia falecido em 1926.

Na fase de criação do roteiro, Stálin deu pessoalmente instruções para adicionar uma linha romântica entre o assistente de Vassíli Tchapaev, Petka, e a atiradora Anka.

O “Pai das Nações” contribuiu deliberadamente para a criação do culto aos heróis mortos da Guerra Civil. Ele não queria glorificar aqueles que sobreviveram, pois poderiam se tornar concorrentes perigiosos na luta pelo poder (muitos deles morreriam em breve durante as repressões de Stálin).

O filme foi um sucesso sem precedentes, sendo assistido por mais de 40 milhões de soviéticos. Stálin assistiu a “Tchapaev” nada menos que 38 vezes.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a imagem de Vassíli Tchapaev se tornou uma das principais da propaganda soviética. Em um dos cartazes era possível ver sua imagem com a legenda “Lutamos bem, esfaqueamos desesperadamente, netos de Suvorov, filhos de Tchapaev!”.

Em 1941, foi filmado o curta-metragem “Tchapaev está conosco”, no qual o comandante da divisão conseguiu atravessar a nado o rio Ural. Ao desembarcar, ele saúda os soldados do Exército Vermelho e se dirige a eles com um apelo inflamado para que derrotem o inimigo sem piedade.

Herói das piadas

Com o passar dos anos, a imagem de Tchapaev perdeu sua grandeza. O público não chorava mais ao assistir a cena de sua morte.

No entanto, ele continuou firmemente enraizado na cultura popular: Vassíli Tchapaev se tornou o herói de piadas nas quais se encontrava constantemente em situações cômicas com seu fiel assistente Petka e a atiradora Anka. Nessa roupagem cômica, ele migrou para dezenas de jogos de computador russos.

A imagem do herói popular também foi usada de forma mais séria: o comandante da divisão é um dos personagens principais do romance filosófico “Tchapaev e o Vazio” de Víktor Pelévin, um dos escritores modernos mais populares na Rússia.

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