‘Partida da Morte’ durante a Segunda Guerra Mundial: verdade ou ficção?

História
BORIS EGOROV
Na URSS, esse confronto esportivo virou tema de livros e filmes heróicos. No que diz respeito à sua autenticidade, porém, já naquela época havia muitas suspeitas acerca disso.

Em 9 de agosto de 1942, ocorreu em Kiev — ocupada pelos nazistas — uma partida de futebol entre um time de aviadores alemães e um time de ex- jogadores do Dínamo local. Os jogadores de futebol soviéticos foram instruídos, sob ameaça de morte, a “entregar” o jogo, mas mostraram coragem e derrotaram os adversários. Por sua insolência, foram executados.

Foi assim que a propaganda soviética cobriu a história do evento esportivo, que, na URSS, foi apelidado de “combate mortal”. A verdade, entretanto, é um pouco diferente.

Brincando com o inimigo

Pouco depois da tomada da capital da Ucrânia soviética, os nazistas, por sugestão de colaboradores locais, retomaram os eventos esportivos com a participação de atletas da região. A intenção era simular uma aparente normalidade do cotidiano. Os participantes desses eventos também recebiam rações alimentares adicionais.

Uma das equipes foi criada pelo dono de uma fábrica de pães chamado Josef Kordič, que era fanático por futebol. Vários ex-jogadores do Dínamo de Kiev e outros clubes trabalhavam em sua fábrica; ele pediu a um dos funcionários soviéticos para procurar antigos companheiros e formar uma equipe. Alguns outros atletas foram especialmente trazidos de campos de prisioneiros de guerra. Assim surgiu o FC Start, que competia em partidas amistosas com outros times de diferentes regimentos militares. Após seis vitórias e nenhuma derrota, a equipe já havia se tornado bastante popular.

Equipes de trabalhadores ferroviários alemães, de artilheiros nazistas e de soldados de infantaria húngaros foram todos derrotados por eles. Em 5 de agosto de 1942, os jogadores de futebol soviéticos derrotaram o clube ‘Flakelf’, formado por artilheiros antiaéreos, aviadores e mecânicos nazistas do aeródromo de Kiev, com um placar de 5:1. A revanche, marcada para 9 de agosto, acabou sendo apelidada de “partida da morte”.

Dispositivo fatal?

“Tínhamos o mesmo uniforme da seleção da URSS: camisas e meiões vermelhos e calções brancos”, disse mais tarde o jogador Makar Gontcharenko. “Todas as histórias de que preparamos nosso uniforme especialmente para o encontro com os aviadores e artilheiros antiaéreos são bobagem. Simplesmente não tínhamos outro uniforme para usar. Jogamos com o que Trussevitch (o goleiro) conseguiu obter para nós desde o início e não tínhamos segundas intenções”, continuou.

De acordo com a versão soviética dos acontecimentos, antes do jogo, um oficial alemão foi à concentração do Start e exigiu que a equipe perdesse – caso contrário, um acerto de contas estaria aguardando os jogadores soviéticos depois. Não há confirmação oficial deste episódio, no entanto.

O árbitro foi um primeiro-tenente da Wehrmacht, mas não houve nenhuma vantagem em favor da equipe alemã.

O jogo foi acirrado e acabou terminando em 5 a 3 para o Start. As equipes posaram juntas para uma foto em grupo, após a qual os jogadores soviéticos se dirigiram ao vestiário para comemorar.

Prisões

Após a partida, o alemão Friedrich Rogausch, o Stadtkommissar (comissário municipal) de Kiev, impôs a proibição de jogos entre as equipes alemãs e soviéticas — mas não aplicou sanções imediatas contra os membros do Start.

Eles continuaram trabalhando na padaria e, em 16 de agosto, derrotaram de forma contundente o Rukh, formado por funcionários públicos e operários da fábrica: o placar foi 8 a 0.

As prisões de jogadores do Start foram começar em 18 de agosto. Entre os detidos estavam aqueles que haviam sido membros do Dínamo, como Aleksandr Tkatchenko, que nem sequer fazia parte da equipe da “partida da morte”. Dez homens foram presos ao todo. Os ex-jogadores do Lokomotiv de Kiev foram esquecidos ou libertados.

Acredita-se que o principal critério para prisão tenha sido a filiação ao Dínamo de Kiev, que era patrocinado pelo NKVD. Para a Gestapo, os jogadores soviéticos trabalhavam para os órgãos de segurança do Estado e realizavam missões de inteligência ou conduziam atividades de sabotagem em Kiev – como misturar vidro na farinha fornecida às unidades alemãs.

Makar Gontcharenko, um dos detidos, diria mais tarde: “Nós demos uma surra no Rukh (…) Isso foi em 16 de agosto. E então, Jorka (Gueórgui) Chvetsov (que havia organizado o Rukh) reclamou que estávamos violando procedimentos, levando uma vida despreocupada e propagandeando o esporte soviético. Resumindo, ele nos criticou. Os alemães verificaram os cartazes pré-guerra para descobrir quem no Start havia jogado pelo Dínamo de Kiev e nos enviaram para um campo de prisioneiros."

Nikolai Korotkikh realmente trabalhou no NKVD no início da década de 1930. Ele não saiu vivo das câmaras de tortura da Gestapo.

Aleksandr Tkatchenko foi morto a tiros em uma tentativa de fuga. Outros oito foram enviados para o campo de concentração de ‘Sirets’.

No inverno de 1943, ocorreu um incidente no campo — o cachorro do comandante foi ferido. Um grupo de prisioneiros foi baleado como punição, e três dos jogadores de futebol do Start estavam entre eles.

Com a aproximação do Exército Vermelho, outros quatro conseguiram fugir, enquanto Pável Komarov foi enviado para trabalhar na Alemanha. Após o fim das hostilidades, ele se mudou para o Canadá.

O mito

Quatro dos 15 jogadores envolvidos na “partida da morte” vieram a falecer, mas suas mortes não tiveram relação com o resultado do jogo contra Flakelf em agosto de 1942. Todos os outros jogadores sobreviveram ilesos à guerra.

A lenda da partida heróica nasceu em 1946 e, nos anos seguintes, ganhou novos contornos. Na URSS, a “partida de morte” virou tema de livros e filmes.

Em 1965, os jogadores foram homenageados postumamente com a medalha “Por bravura”, enquanto os jogadores sobreviventes receberam medalhas “Por serviço em batalha”. Os jogadores do Start Gueórgui Timofeiev e Lev Gundarev não receberam nada — durante a ocupação, serviram na polícia e, após a libertação de Kiev, receberam penas de até 10 anos.

No entanto, nem todos apoiaram a heroização desses acontecimentos. Em 1971, o major Udin da KGB escreveu em um relatório ao coronel Fedortchuk, presidente da KGB ucraniano, que “em uma hora difícil da Pátria”, os jogadores de futebol permaneceram nos territórios ocupados e deram o seu apoio “às iniciativas dos traidores da Pátria entre os representantes das autoridades municipais” para a criação de clubes de futebol.

“À luz desses fatos”, observou Udin, “tudo o que até agora foi feito para exaltar os antigos jogadores do FC Dínamo de Kiev na imprensa e no cinema parece-me profundamente equivocado”.

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