O “Telegram” de antigamente: o costume russo de usar cartões de visita para se comunicar

História
GUEÓRGUI MANÁEV
No final do século 18, a cultura das visitas pessoais na Rússia alcançou um nível absurdo: mesmo visitas a parentes e amigos podiam levar vários dias. Foram os cartões de visita que permitiram o fim dessas inviáveis normas sociais.

“Devido ao grande número de conhecidos, sair de Moscou por muito tempo não foi uma brincadeira para Maria Ivanovna. Ela teve que se despedir de todos para não ofender ninguém”, escreveu, no início do século 19, o funcionário público russo Dmítri Rúnitch sobre sua parente idosa. “Na quinta-feira, às 18 horas, Maria Ivanovna subiu na carruagem com o registro de todas as pessoas que deveria visitar e partiu para encontrá-las. Neste dia foram 11 visitas; na sexta, antes do almoço, mais 10; depois do almoço, 32. No sábado, outras 10; no total, ela visitou 63 casas. Se todas essas rodadas de visitas fossem comparadas a um imenso jantar, com suas entradas e pratos principais, nessa altura ela ainda não teria dado conta de toda a comida. ‘Cerca de uma dúzia de visitas para parentes mais próximos precisaram ficar para mais tarde, vou deixar como se fosse um lanche’, ela brincou. Dois dias depois começaram as visitas de retorno. Num dia à tarde ela recebeu as princesas Golítsina, Chakhovskaia, Tatíscheva, Gagárina e Nikoleva. Ela ficou com medo: ´Bom, o que eu faço se todas as cem pessoas decidirem me visitar também?´, então mandou responder a todos que não estava em casa”, conta Rúnitch em suas memórias.

Para a nobreza de Moscou e São Petersburgo, as visitas formais a parentes e amigos se tornaram um dever diário. Partidas e chegadas de e para a cidade, "dias do nome" (leia aqui porque os russos costumavam celebrar "dias do nome" em vez de aniversários), feriados importantes, casamentos e funerais - todos esses eventos exigiam uma visita formal, que era seguida por uma visita de retorno. Ignorar esta regra significava ser excluído da sociedade "nobre e decente" e, assim, perder a possibilidade de promoção no serviço ou de um casamento lucrativo.

Esse costume social parecia exótico para os estrangeiros. No entanto, no início do século 19, junto com a moda de tudo que é inglês, a cultura dos cartões de visita chegou à Rússia.

Na época, os cartões eram chamados de “bilhetes de visita”. Nos corredores e saguões das casas de nobres ricos havia bandejas de prata ou pratos caros especiais para esses "bilhetes". Na maioria dos casos havia dois pratos: um para bilhetes trazidos pessoalmente, outro para os entregues pelos criados. Fazia muita diferença se o visitante tivesse ido pessoalmente ou apenas enviado um criado. Alguns nobres construíam salas especiais para o recebimento de bilhetes. Na casa de um nobre de uma antiga família em Moscou, por exemplo, os visitantes eram saudados por um urso de pelúcia com a boca aberta e uma bandeja para cartões de visita nas patas.

Os nobres do início do século 19 sempre carregavam um pacote de cartões de visita. Ao chegarem aos locais de visita, não era necessário anunciar quem eram, já que o mordomo recolhia o cartão. Os bilhetes das mulheres eram maiores e decorados. Já os dos homens eram do tamanho convencional, mais ou menos do tamanho de um cartão bancário. Outra diferença é que os bilhetes dos homens casados eram mais modestos e menores do que os dos solteiros.

O cartão de visita trazia o nome, título, posto ou cargo da pessoa. Médicos e cientistas escreviam “doutor”; militares, seu posto; funcionários públicos, seu cargo. Alguns tinham dois tipos de bilhetes: um com endereço, outro com um espaço em branco para escrever o endereço do encontro.

Após receber o bilhete, o criado o levava ao seu dono, que decidia se aceitaria o hóspede ou se diria estar ocupado.

Regras para comunicação com cartões de visita

A velha nobreza desprezava os cartões de visita, especialmente trazidos por criados. “Isso é totalmente inaceitável! Mandem um servo para baixo da janela para que jogue o cartão para a antiga nobre russa!”, indignavam-se as velhas senhoras nobres, segundo as memórias do músico russo Nikolai Makarov.

Mas tudo mudou após a coroação do imperador Nicolau 1º, em setembro de 1826, que contou com a presença de centenas de convidados franceses e ingleses. Os estrangeiros trouxeram seus cartões de visita e começaram a distribuí-los entre os convidados. Assim, gradualmente, os cartões de visita se tornaram a norma na sociedade russa.

Segundo o costume russo, a primeira visita tinha que ser realizada pessoalmente, depois era possível marcar um novo encontro deixando um cartão. Era preciso responder ao cartão recebido enviando o seu cartão. Se isso não acontecesse, ou se o cartão fosse enviado em envelope de papel, já era motivo para não voltar a visitar essa casa.

Quando o destinatário não estava em casa, era necessário dobrar o cartão. As dobras tinham diferentes significados:

– “Eu vim pessoalmente”: canto superior direito dobrado;

– “Parabéns”: canto superior esquerdo dobrado;

– “Condolências”: canto inferior esquerdo dobrado;

– “Adeus”: canto inferior direito dobrado.

Se nenhum dos cantos estivesse dobrado, significava que o cartão havia sido trazido pelo servo.

Em meados do século 19, o costume de deixar cartões se tornou um processo totalmente mecânico, executado pelos criados. “No Ano Novo e na Semana Santa há maior consumo de cartões de visita”, escreveu o jornalista e escritor russo Mikhail Zagóskin. “Lacaios de cocheiros, a cavalo e a pé, percorrem toda a cidade. [...] Às vezes eles se encontram em locais específicos para facilitar seu trabalho; o principal deles é em Okhótni Riad [centro de Moscou]; lá eles comparam suas listas e trocam cartões de visita. Obviamente, é impossível evitar erros. Às vezes, você pode receber o cartão de um senhor que você não conhece, ou parabenizar uma pessoa que você não gostaria de ver”.

A cultura de troca de cartões de visita desapareceu imediatamente após a revolução e a chegada dos bolcheviques ao poder na Rússia em 1917.

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