A história da comida enlatada desde a Rússia imperial (e quem ficou rico com ela)

História
MARIA BUNINA
Para muitos russos, a carne ensopada enlatada está intrinsecamente ligada aos anos da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA a enviavam à URSS como ajuda humanitária. Mas, na verdade, a história do ensopado de carne enlatada e de outros alimentos em lata começou na Rússia muito antes...

Em 1900, exploradores liderados pelo Barão Eduard von Toll partiram de São Petersburgo em uma missão para encontrar a misteriosa Terra de Sannikov. A expedição polar para encontrar essa “ilha fantasma” no Oceano Ártico não obteve sucesso, mas marcou o início de todo um experimento com comida enlatada.

Por meses a fio, os cientistas ficaram presos no gelo perto da Península de Taimir, mas continuavam com suas pesquisas em terra e em laboratórios instalados nas embarcações. Para ter comida na península em caso de emergência, Toll ordenou enterrar a uma profundidade de pouco mais de um metro caixas de alimentos.

As caixas continham biscoitos, aveia, chocolate, chá, açúcar e 48 latas de caldo verde com carne e mingau que tinham sido feitos naquele ano de 1900. Eles foram produzidos pela primeira fábrica de conservas russa, de propriedade de François Azibert, que fornecia alimentos para o exército imperial.

Os exploradores acabaram não precisando desse estoque de comida, mas seguindo os diários de Toll, encontrado em 1973, outra expedição conseguiu achar a comida escondida. Surpreendentemente, a comida enlatada ainda era comestível e até bastante apetitosa.

Ela foi provada novamente em 2004 e o “caldo verde com carne e mingau” feitos um século antes ainda eram comestíveis e passaram em testes de qualidade realizados em laboratório.

Comida enlatada francesa na Rússia

Na Rússia, a comida enlatada chegou mais tarde que na Europa ou nos EUA. Os pioneiros nesse campo foram os franceses. No final do século 18, Napoleão Bonaparte estava preocupado em fornecer alimentos aos seus soldados durante as longas campanhas militares e, por isso, anunciou um prêmio em dinheiro para quem encontrasse uma solução.

Em 1810, o prêmio foi concedido a Nicolas Appert, junto com o título de “Benfeitor da humanidade”, por sua invenção da “apertização” - um método para selar os alimentos em um pote de vidro, seguido de uma longa fervura.

Appert inventou a conserva de alimentos em potes de vidro, mas, simultaneamente, o inglês Peter Durand, também em 1810, patenteou um método semelhante de conservação em potes de metal.

Em 1812, iniciou-se a produção de alimentos enlatados para os militares britânicos. A tecnologia logo passou a ser usada pelos EUA e pela Alemanha.

Na década de 1820, a variedade de alimentos enlatados nos Estados Unidos foi significativamente expandida: já não era só carne, legumes e sopas, mas também lagostas, atum, frutas e outros.

Seria possível que a Rússia tivesse descoberto a comida francesa em conserva durante a Guerra de 1812. Segundo alguns pesquisadores, isso aconteceu, mas não foi para frente.

Os soldados russos encontraram comida em conserva com os soldados franceses capturados, mas tinham medo de experimentá-la, temendo que pudesse conter “carne de rã”.

Quem se provou o mais corajoso nesse assunto foi o marechal de campo do exército russo, Mikhail Kutuzov: ele experimentou destemidamente o misterioso item do vidro francês e declarou, com segurança, que não se tratava de rãs, mas só cordeiro. Só para garantir, porém, ele proibiu seus soldados de comer o conteúdo.

Enlatados para os ricos

Na década de 1830, alimentos enlatados passaram a ser importados para a Rússia como algo exótico e caro. Em sua peça “O Inspetor Geral” (1835), Nikolai Gógol mencionava a comida enlatada na literatura russa pela primeira vez.

A personagem principal, o oficial menor Khlestakov, gabava-se de sua vida luxuosa em São Petersburgo: “A sopa vem em uma terrina direto de Paris de navio. Quando abrem a tampa, o aroma é diferente de tudo na natureza.”

No entanto, não podemos dizer que a ideia de conservar alimentos não interessava aos cientistas russos. Ainda em 1763, enquanto preparava uma expedição para explorar a rota marítima do norte da Rússia para a China e a Índia, o famoso cientista Mikhail Lomonóssov preparou um concentrado de uma sopa seca com especiarias. Ele sobreviveu com sucesso à viagem às margens de Kamtchatka, mas o público em geral nunca soube sobre o alimento que ele inventou.

A ideia de uma sopa concentrada em sacos também foi pesquisada por Vassíli Karazin, cientista e fundador da Universidade de Kharkiv. Em 1815, ele apresentou sua ideia ao conde Aleksêi Araktcheiev (um ministro militar e confidente do imperador Alexandre 1°), mas não conseguiu apoio.

A comida enlatada permaneceu uma questão de pesquisa científica até a Guerra da Crimeia de 1853-1856. Durante esse conflito, soldados britânicos e franceses comiam comida enlatada, enquanto os russos sofriam com a falta de alimentos.

Foi quando a Rússia passou a olhar para os alimentos enlatados como um suprimento de longa data para o exército e, assim, o imperador Alexandre 2° ordenou a compra de um lote experimental de alimentos em conserva do exterior.

Em 1870, a Academia Médica Militar de São Petersburgo começou a estudar a viabilidade de contratar fabricantes russos de alimentos enlatados para encontrar maneiras de alimentar os soldados no campo de batalha.

Foi quandos e propôs ao francês François Azibert, cuja fábrica funcionava em São Petersburgo desde 1862, que fornecesse amostras de comida em conserva para os militares.

Naquela época, suas conservas com vegetais e cogumelos eram vendidas nos mercados locais e para atacadistas. As amostras preparadas para os militares passaram com sucesso nos testes em hospitais locais e, depois de algum tempo, Azibert fechou um contrato de longo prazo com o exército.

Em 1887, foram desenvolvidos e colocados em produção cinco tipos de comida em conserva para o exército: carne frita (ou cordeiro), ragu, caldo verde com mingau, ervilha com carne e vegetais.

Reis da comida em conserva

Outro empreendedor francês, de sobrenome Mallone, teve a ideia de pegar as ervilhas descascadas dos moradores da região de Iaroslavl e enlatá-las. Antes disso, os locais apenas secavam as ervilhas.

Sua fábrica de conservas de ervilhas começou a funcionar em 1875. Posteriormente, passou-se a conservar também pepinos e outros vegetais locais. Esses itens eram vendidos na Rússia e também exportados.

Outra fábrica de conservas ainda foi aberta por Joseph Kefeli, em 1892, em Balaklava, na costa sudoeste da Crimeia. Os locais pescavam tainhas, cavalas, belugas e outros peixes e na fábrica, esses peixes do Mar Negro eram transformados em iguarias enlatadas que eram vendidas por todo o império.

A fábrica de conservas de carne de um alemão chamado Birman, que morava na cidade de Kozlov, também obteve certo, mas sua história teve um fim trágico devido aos abusos que os trabalhadores sofriam ali.

Ainda antes da Revolução de 1917, Birman construiu um matadouro (que processava de 300 a 400 cabeças de gado por dia) e estabeleceu a produção de carne enlatada. Mas os trabalhadores não aguentavam as duras condições de trabalho da empresa e, em 1916, eles entraram em greve e incendiaram a fábrica.

Birman fugiu da Rússia, deixando um capataz na fábrica. Em 1919, ela foi totalmente destruída e saqueada por soldados e moradores locais durante a Guerra Civil.

Para compreender como era vasta a produção, basta apontar um fato: entre 1904 e 1905, as fábricas de conservas de São Petersburgo, Odessa, Riga e Mitau (as três últimas cidades faziam parte do Império Russo) que trabalhavam para o Ministério da Defesa produzia 250 mil latas por dia - e até 75 milhões por ano.

Segundo dados oficiais, no início da Primeira Guerra Mundial, as maiores fábricas de conservas do país produziam entre 70.000 e 100.000 porções diárias, de acordo com o relatório de G.I. Shigalin “Economia de guerra durante a Primeira Guerra Mundial”.

A lata mais fora do comum, ‘com autoaquecimento’

Em 1897, o engenheiro e inventor Evguêni Fiódorov inventou uma lata que se autoaquecia. Essa lata tinha um fundo duplo e retinha água e cal virgem. Os dois reagiam quimicamente quando o fundo era torcido, o que levava ao aquecimento da lata.

A produção dessas inovadoras latas se iniciou em 1915 e elas foram enviadas para a frente de batalha para alimentar os russos durante a Primeira Guerra Mundial. Sem ter que produzir fumaça, algo que exporia sua posição, os soldados podiam desfrutar de um prato quente.

Latas análogas passaram a ser usadas posteriormente pelas tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial e, no Japão, essa tecnologia ainda é usada na produção de alimentos enlatados até hoje.

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