Por que os soldados soviéticos no Afeganistão ferviam suas munições?

Patrick Robert/Sygma via Getty Images
E por até cinco horas de fervura. Mas para que diabos eles faziam isso?

Durante a Guerra Afegã-Soviética, havia um boato intrigante envolvendo o Exército da URSS: soldados russos eram frequentemente vistos fervendo munição por horas a fio em uma panela a fogo aberto. Relatos dessa prática generalizada parecem inexplicáveis aos contemporâneos, mas havia uma lógica por trás desse hábito de guerreiros experientes.

O negócio da guerra

Para alguns, a presença soviética no Afeganistão foi uma tragédia, mas outros viram o conflito como uma oportunidade de negócios. O governo da URSS investiu toneladas de dinheiro para manter e abastecer suas tropas no país – e, em meio a este cenário, não faltaram pessoas que tentassem lucrar com peculato e apropriação indébita.

“Um bacanal reinava na cidade. Os militares vendiam tudo o que podiam nos [bazares], de munição militar e comida a cobertores e lençóis”, escreveu o historiador de guerra Mikhail Jirokov em um livro sobre a presença soviética no Afeganistão.

Polícia militar russa relaxando durante uma patrulha no bairro de Shahr-E Naw, em Cabul, 1988.

Todos os itens de valor viravam uma oportunidade de negócios para alguns oficiais corruptos que controlavam o fluxo de mercadorias soviéticas para o Afeganistão.

“Em 1986, [...] suprimentos estratégicos de alimentos do Exército foram [...] enviados para o Afeganistão. Apenas parte chegou ao Exército. A maior parte acabou nos bazares afegãos. Carne enlatada [...] Presunto polonês e húngaro, ervilhas, óleo de girassol, gordura vegetal, leite condensado, chá e cigarros – tudo o que não chegava aos famintos soldados soviéticos era vendido a mercadores afegãos”, escreveu Jirokov.

Guerra Soviético-Afegã.

Enquanto oficiais sem escrúpulos ganhavam dinheiro sujo, os soldados rasos das Forças Armadas soviéticas no Afeganistão não somente arriscavam suas vidas diariamente, mas também eram insuficientes em número – e muitas vezes mal alimentados.

Comerciantes afegãos

Deixados ao relento, os soldados tiveram que agir para sobreviver. Eles precisavam de dinheiro para comprar comida, roupas e outros itens dos comerciantes afegãos locais.

A única coisa que os soldados tinham a oferecer era munição, pois a tinham em abundância. Além disso, em tempos de guerra, era praticamente impossível rastrear as balas; ninguém conseguiria dizer se a munição perdida foi utilizada em combate ou desviada. Para os soldados que foram roubados injustamente, o comércio de munição foi um salva-vidas.

No entanto, todos perceberam para onde a munição estava sendo revendida. Ninguém duvidava de que os comerciantes afegãos vendessem a munição soviética aos mujahidin afegãos que lutavam contra o governo afegão apoiado pelos soviéticos.

Cada bala vendida poderia matar um soldado soviético ou mesmo aquele que a vendeu. Com isso, antes que a munição pudesse ser vendida, os soldados soviéticos tinham que garantir que as balas estivessem danificadas e irreparáveis. 

Fervendo munição

Na época, os soldados acreditavam que a fervura prolongada danificava a munição, de modo que o rifle do inimigo cuspia os cartuchos impotentes ou falhava ao disparar.

A receita era simplesmente primitiva: fazer fogo, ferver água em praticamente qualquer recipiente de metal, colocar a munição na água fervente e “cozinhá-la” por quatro a cinco horas. A água não permitia que a munição detonasse acidentalmente, mas a exposição prolongada a altas temperaturas danificava a munição sem alterar visualmente os projéteis.

Soldados soviéticos em Cabul.

Ainda assim, havia um problema. Os soldados soviéticos no Afeganistão tinham principalmente dois rifles Kalashnikov: o AMK, que usava balas de calibre 7,62 mm, e o AK-74, com balas de calibre 5,45 mm.

Apesar da prática generalizada de ferver os dois tipos de balas antes de vendê-las aos afegãos, isso provavelmente não teve efeito nas munições modernas, devido aos materiais usados ao produzi-las.

Nos séculos 19 e 20, o fulminato de mercúrio era usado em espoletas para inflamar o propelente. Quando esta bala é aquecida a temperaturas de cerca de 100°C, o produto químico em questão sofre um processo de decomposição térmica. Em suma, uma bala antiga em que foi usado fulminato de mercúrio deixaria de funcionar depois de ter sido fervida por algumas horas.

Ofensiva mujahidin na área de Jalalabad, no Afeganistão.

O problema é que, no início do século 20, novos compostos mais avançados foram introduzidos como substitutos do fulminato de mercúrio — que era tóxico e menos estável. Esses novos compostos eram extremamente resistentes à exposição térmica. Assim, uma bala moderna dispararia normalmente, mesmo que tivesse sido fervida por horas.

Muito provavelmente, as balas produzidas na URSS durante a Guerra do Afeganistão eram resistentes ao aquecimento, e os esforços dos soldados para danificá-las antes de vendê-las foram em vão.

Guerra Soviético-Afegã.

Nesse contexto, os soldados soviéticos faziam tudo o que podiam para sobreviver — inclusive, ferver sua munição antes de vendê-la aos afegãos.

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