Nadejda Durova, a primeira oficial trans da Rússia tsarista?

Sua história foi única na Rússia do início do século 19. Em uma época dominada por homens, ela serviu na cavalaria e foi uma heroína de guerra. Até mesmo o tsar russo permitiu que ela servisse no Exército com um nome masculino.

Nadejda Durova em 1810, da coleção do museu Borodinó (esq.) // Viktor Kudelkin. Retrato de Nadejda Durova, 1953 (dir.)

A ‘Donzela da Cavalaria’, ‘heroína da Guerra Patriótica de 1812’, a ‘Amazona Russa’ e a primeira oficial do sexo feminino na Rússia. É assim que Nadejda Durova - ou mais precisamente, Aleksandr Aleksandrov, como era chamada no Exército e no cotidiano - é conhecida na Rússia.

Infância de invejar Hollywood

Nadejda Durova descreveu em detalhes a história de sua vida na autobiografia ‘A Donzela da Cavalaria: Diários de uma Oficial Russa nas Guerras Napoleônicas’. Ela nasceu em 1790 (em 1783, segundo algumas fontes) em Malorossia, na atual Ucrânia, então parte do Império Russo. Sua mãe, contra a vontade dos pais, fugiu com um capitão dos hussardos chamado Durov e acabou se casando secretamente com ele. Ela sonhava em ter um menino, mas, para sua decepção, deu à luz uma menina, que também era uma criança muito inquieta.

Certo dia, quando o regimento estava em movimento, Nadejda, de apenas quatro meses, começou a gritar tão alto que sua mãe, “totalmente exasperada”, simplesmente jogou o bebê pela janela do carrinho. Milagrosamente, a menina não se machucou e foi apanhada pelos hussardos. O pai, num acesso de raiva, decidiu tirar a filha de sua mãe e colocou Nadejda aos cuidados de um colega soldado.

“O homem que me criou, Astakhov, passava o dia todo me carregando nos braços, me levava para os estábulos do esquadrão, me colocava sobre um cavalo, me deixava brincar com uma pistola e manusear um sabre. E eu batia palmas e caía na gargalhada ao ver as faíscas e o aço brilhante”, conta Durova em seu livro.

Nadejda Durova, aos 14 anos

Vários anos depois, os Durovs tiveram outro filho e o pai decidiu deixar o serviço militar para não continuar constantemente em movimento agora que eles tinham dois filhos. Nadejda foi devolvida à mãe, mas o relacionamento delas não eram bom - a mãe tentou dar-lhe uma educação supostamente adequada para uma menina, ensinando-a a bordar, enquanto a filha pedia uma pistola e um cavalo. O pai era mais indulgente e consolava a mãe dizendo se tratar “apenas de uma fase passageira”.

Quando Nadejda tinha 12 anos, seu pai comprou um cavalo chamado Alkid. Todas as manhãs, ela ia secretamente aos estábulos, sonhando em domá-lo: a garota conversava com Alkid, dava-lhe açúcar e cavalgava sem medo pelo pátio. Certa vez, o cavalariço testemunhou a cena - o garanhão empinou e começou a galopar loucamente. Nadejda acalmou o cavalo com cuidado, e o cavalariço foi obrigado a admitir que ela controlava Alkid muito melhor do que ele. Dali em diante, Nadejda passava o dia fazendo atividades “de menina”, como bordar, mas à noite, escondida de sua mãe, ela montava em seu garanhão e saía a galopar.

A primeira feminista e seu sonho de liberdade

“Eu poderia ter enfim esquecido todas as minhas ambições fanfarronas e me tornado uma jovem comum, assim como todas as outras, se minha mãe não tivesse sido tão tristemente emblemática do papel das mulheres. Ela se expressava nos termos mais dolorosos sobre o destino do sexo feminino: em sua opinião, as mulheres deveriam dar à luz e viver e morrer em servidão ”, escreveu Durova em seus Diários.

O pai de Nadejda, que gostava muito dela, também partiu seu coração quando lhe disse que, se ela fosse homem, poderia ser uma força e apoio para ele em sua velhice. Foi assim que Durova decidiu, a qualquer custo, “se separar do sexo que,
como eu acreditava, era uma maldição divina”.

V. Gau. Retrato de Nadejda Durova

Em 1806, quando Nadejda tinha 16 anos, ela decidiu fugir de casa. À noite, sem o conhecimento de seus pais, ela cortou o cabelo, vestiu um uniforme cossaco e foi a cavalo até o local onde um regimento cossaco que passava estava acampando. O coronel não suspeitou que o estranho fosse uma menina e cedeu à persuasão de Durova de inscrevê-la provisoriamente no regimento até que se juntassem às tropas regulares. Foi assim que Nadejda se tornou Aleksandr.

Não demorou muito, no entanto, para que todos começassem a notar que Durova não se parecia com um dos cossacos de bigodes fartos - e a donzela da cavalaria decidiu continuar suas andanças. Sozinha, ela saboreou sua liberdade - e enfim acabou no Regimento Uhlan polonês (a Polônia fazia então parte do Império Russo).

Durova participou de várias batalhas do Exército russo contra as tropas napoleônicas. Em seus “Diários”, ela descreve a sua primeira batalha, perto de Guttstadt. No decorrer do confronto, chegou a salvar a vida de um oficial que havia sido cercado por tropas inimigas após ser derrubado de seu cavalo. Já o seu cavalo, Alkid, tornou-se um companheiro fiel, acompanhando-a em todos os lugares.

Aprovação do Imperador

A lenda de Nadejda quase foi destruída por uma carta que ela escreveu ao pai, pedindo perdão por ter fugido de casa. Ela também contava que havia se juntado a um regimento uhlan e ido para a guerra. O pai, por sua vez, se assustou e enviou a carta a amigos influentes em São Petersburgo para saber se sua filha estava viva. No final, a carta chegou às mãos do imperador Aleksandr 1º, que “caiu em lágrimas”.

Nadejda Durova com a Cruz de São Jorge

Nadejda foi chamada então para um encontro com o Imperador. Ele lhe disse que seus comandantes haviam relatado sua prodigiosa bravura em batalha e perguntou se os rumores de que ela não era um homem eram verdadeiros. Depois de ponderar, a jovem respondeu com sinceridade. O imperador agradeceu sua coragem e sugeriu que Durova voltasse para casa, mas ela se jogou aos pés dele e pediu a honra de lutar pela Pátria e por seu nome. Ele não apenas atendeu seu pedido, como lhe concedeu o direito de usar o nome masculino - assim, Nadejda Durova tornou-se Aleksandr Aleksandrov - e a Cruz de São Jorge por salvar a vida do oficial.

Na comitiva de Kutuzov

Auguste-Joseph Desarnod. Ataque da Cavalaria Uvarov em Borodinó

Durova também demonstrou coragem na lendária batalha contra Napoleão em Borodinó, em 1812, mas sofreu congelamento e uma lesão após ser atingida em uma explosão. Ela deixou o campo de batalha escondendo a gravidade de seus ferimentos. Durova teve então uma discussão com o superior - ela havia saído em busca de seu cavalo e se separado dos homens que lhe foram confiados. Seu comandante ameaçou matá-la. Nadejda sentiu-se insultada e decidiu contatar diretamente Kutuzov, o comandante-chefe. Ela implorou para fazer parte de sua comitiva - foi aí que a jovem descobriu que ele já tinha ouvido falar de sua bravura em uma campanha militar anterior e ficou feliz em levá-la consigo.

A. Shepelyuk. Marechal de campo Mikhail Kutuzov no seu posto de comando durante a Batalha de Borodinó em 1812 (1951)

Depois de algumas semanas, no entanto, Kutuzov percebeu que os ferimentos de Nadejda eram graves e a enviou para tratamento médico. Quando ela se recuperou, chegou a notícia de que o general havia sido morto. Ela foi, porém, autorizada a retornar ao serviço militar após curar a lesão.

Durova, a escritora

Nadejda foi persuadida por seu pai a se aposentar do Exército em 1816. Ainda assim, ela passou o resto da vida vestindo roupas masculinas, usando o nome Aleksandr Aleksandrov e referindo-se a si mesma no gênero masculino. Franca e direta, repetia com frequência que havia nascido e sido criada em um campo militar.

Ela então escreveu suas memórias e seu irmão, que conhecia o famoso poeta russo Aleksandr Púchkin, mostrou-lhe os manuscritos. Púchkin não poupou elogios ao assunto, estilo e talento literário de Aleksandrov, e pediu para comprar o material.

“A vida do autor é tão curiosa, tão conhecida e tão enigmática que a solução do quebra-cabeça deve causar uma impressão forte e universal”, escreveu Púchkin em uma carta ao irmão de Nadejda.

Monumento a Nadejda Durova em sua propriedade em Ielabuga, Tatarstão, onde ela passou seus últimos anos de vida

Púchkin imprimiu as memórias no Sovremennik (‘O Contemporâneo’), o jornal que publicava, sob o título ‘Memórias deN.A. Durova’. No prefácio, ele também teceu à autora uma crítica brilhante, nomeando-a como Nadejda Durova. “Nós lemos essas confissões de uma mulher tão fora do comum com um compromisso indescritível; somos capazes de ver com fascínio como os dedos tenros que antes agarravam o punho ensanguentado da espada de um uhlan também empunham uma caneta rápida, vívida e ardente.”

Durova ficou profundamente indignada por ter sido exposta pelo poeta. Em uma carta, ela exigiu que a tiragem com o seu antigo nome fosse destruído. Mas Púchkin permaneceu inflexível. “Seja ousado – embarque em um caminho literário com a mesma coragem com que entrou no caminho que lhe trouxe fama”, rebateu o poeta.

Durova escreveu vários outros trabalhos em prosa, nos quais abordou a temática do status das mulheres na sociedade. Ela morreu em 1866 aos 82 anos.

LEIA TAMBÉM: Hussardos, a tropa mais tresloucada da Rússia Imperial

Caros leitores e leitoras,

Nosso site e nossas contas nas redes sociais estão sob ameaça de restrição ou banimento, devido às atuais circunstâncias. Portanto, para acompanhar o nosso conteúdo mais recente, basta fazer o seguinte:
Inscreva-se em nosso canal no Telegram t.me/russiabeyond_br

Assine a nossa newsletter semanal

Ative as notificações push, quando solicitado(a), em nosso site

Instale um provedor de VPN em seu computador e/ou smartphone para ter acesso ao nosso site, caso esteja bloqueado em seu país.

Autorizamos a reprodução de todos os nossos textos sob a condição de que se publique juntamente o link ativo para o original do Russia Beyond.

Leia mais

Este site utiliza cookies. Clique aqui para saber mais.

Aceitar cookies