Como eram as viagens de cidadãos soviéticos ao exterior?

Turistas no convés do navio Amur durante viagem ao longo do Danúbio, na República Popular da Bulgária

Turistas no convés do navio Amur durante viagem ao longo do Danúbio, na República Popular da Bulgária

Iakov Berliner/Sputnik
Para os turistas, terras estrangeiras prometiam tentações às vezes impossíveis de resistir. Mas, antes de chegar lá, havia muito chão a percorrer no próprio país.

Para a maioria dos cidadãos soviéticos, o turismo internacional era uma experiência única na vida. Aqueles que tiveram a sorte de fazer uma viagem ao exterior muitas vezes mergulharam de cabeça em problemas.

Só os “mais confiáveis”

O turismo internacional se tornou possível pela primeira vez na URSS no início da década de 1930, quando a organização estatal responsável pelo envio de pessoas soviéticas em viagens ao exterior, a Sovtour, foi estabelecida. No entanto, como o país sob a ditadura de Stálin estava se isolando cada vez mais do resto do mundo, a Sovtour não teve um desempenho particularmente bom, limitando suas operações a apenas um único cruzeiro.

Passaporte estrangeiro do poeta soviético Vladímir Maiakóvski

O degelo de Khruschov – o período em que a repressão e a censura na União Soviética foram amenizadas – resultou, dentre outras coisas, na suspensão das severas restrições ao turismo internacional para o povo soviético. A partir de meados da década de 1950, todo cidadão soviético poderia, teoricamente, fazer uma viagem ao exterior. Porém, na prática, era uma coisa totalmente diferente para as pessoas comuns.

Para obter permissão para viajar ao exterior, o potencial candidato precisava de referências de trabalho que destacassem sua moralidade impecável. Os turistas tinham que aparecer, ao menos no papel, comunistas dedicados e indivíduos modestos, mas politicamente ativos.

As cartas de referência eram então avaliadas por diferentes instituições burocráticas da União Soviética antes de finalmente pousar em uma mesa na Lubianka, onde o candidato acabava enfim sendo aprovado pela KGB.

Funcionário da Aeroflot, em 1958

“Havia um sistema especial de vários briefings, durante os quais uma pessoa tinha que assinar um formulário onde prometia não divulgar informações [sobre a vida na URSS] e também tinha que se familiarizar com um certo conjunto de regras. Além disso, o potencial turista tinha que passar por um tipo de prova. Por exemplo, se alguém estava indo para a Alemanha Oriental, a pessoa deveria dizer o nome do presidente do Partido Comunista Alemão”, explicou, em uma entrevista, o historiador Igor Orlov.

Na prática, o procedimento para obter permissão para viajar ao exterior era tão amplo e elaborado que abria espaço para decisões arbitrárias e corrupção. Aqueles que tiveram a sorte de receber permissão tinham depois que resolver os problemas da parte financeira.

Custos e grana extra

Embora os custos das viagens variassem dependendo do destino, a maioria dos passeios disponíveis para os cidadãos soviéticos começava a partir de  150 rublos, cerca de 50 a 100 rublos a mais do que um salário médio mensal na URSS na década de 1960.

A geopolítica também desempenhava um papel importante nos destinos de viagem mais comuns dos turistas soviéticos. A grande maioria das viagens para o exterior se concentravam na Tchecoslováquia, Alemanha Oriental e República Socialista da Romênia.

Avião prestes a pousar na Rússia, em 1958

A crescente popularidade da Bulgária como destino de férias para os soviéticos acabou virando um ditado comum: “Um homem não é um pássaro, a Bulgária não fica no exterior”.

A revolução cubana abriu um destino mais exótico para os soviéticos. A Índia, uma nação não alinhada que proclamou sua neutralidade durante a Guerra Fria, mas, no entanto, mantinha boas relações com a União Soviética, representava outro destino de férias para os soviéticos. Às vezes, também foram organizadas na década de 1960 excursões para a Finlândia, Itália, Coreia do Norte, Japão, Argélia, Egito, Tunísia e até México.

Antiga fortaleza El Morro, em Cuba, dezembro de 1983

No entanto, quanto mais exótico o destino, mais cara era a viagem. Enquanto um pacote para a Bulgária custava cerca de 150 rublos, um cruzeiro com escalas em vários países da Europa ou da África poderia custar 900 rublos – o equivalente a cinco meses de salário de  um trabalhador soviético de classe média.

Embora o local de trabalho ou a fábrica pudesse cobrir parte das despesas, o privilégio de viajar era geralmente reservado para os indivíduos bem relacionados. Cidadãos soviéticos comuns tinham que economizar muito para custear viagens como essa.

Havia também uma quantia limite de moeda local que os turistas soviéticos poderiam comprar. Por exemplo, os poucos soviéticos que viajaram para os EUA em 1961 só podiam comprar um total de 31,90 dólares americanos (ou US$ 2,30 por dia de estadia no país).

1989

Como esse valor não bastava comprar coisas que eram escassas na União Soviética, os turistas soviéticos levavam intencionalmente itens extras de valor, como câmeras fotográficas ou garrafas de vodca, para vendê-los e fazer algum dinheiro a mais.

Striptease e encontros fugazes

Os cidadãos soviéticos sempre viajavam para o exterior em excursões organizadas. Antes da partida, os líderes dos grupos eram selecionados com base em sua reputação e filiação partidária. Eles eram responsáveis ​​por monitorar o comportamento dos membros do grupo, relatar incidentes e redigir relatórios finais após o retorno dos turistas à União Soviética.

Além disso, os grupos de turistas soviéticos costumavam ser acompanhados por um ou dois agentes da KGB, cujo trabalho era garantir que a viagem fosse tranquila e não prejudicasse a reputação e os interesses da URSS.

Por vezes, no exterior, os turistas soviéticos se viam de tantas novas tentações que dificilmente era possível contê-los, apesar de todo o preparo.

Turistas de Leningrado e Tcheliábinsk em praia na Bulgária, em junho de 1977

“...sem minha permissão como líder do grupo, ainda que em seu tempo livre, P. e H. foram juntos a um clube de strip-tease, ainda que os ingressos para o strip-tease fossem bastante caros, de 35 a 50 dinares”, pode-se ler em um desses relatórios.

Clubes de strip, câmbio de moedas e comércio ilegais, bares, brigas após consumo de álcool e outros comportamentos indesejados eram parte integrante das excursões soviéticas no exterior. Um dos comportamentos mais insultantes, porém, era ter um encontro fugaz com um estrangeiro. Tais incidentes causavam escândalos e iam parar nos relatórios finais.

“As mulheres compunham 80% de [todos os membros dos] grupos de turistas soviéticos com destino à Bulgária. Eles chegavam, conheciam os homens locais e desapareciam durante a noite. Era um choque para os chefes das delegações quando as meninas não voltavam para seus hotéis por dias. Ao se explicarem depois, as fugitivas chegavam a relatar que haviam passado a noite inteira ‘pegando conchas à beira-mar na praia’. Isso começou a ir tão longe que os líderes dos grupos de turismo trancavam as meninas e colocavam uma ‘sentinela’ na porta para garantir que elas não fossem a lugar nenhum à noite”, disse Orlov.

Membros da trupe de dança do Exército soviético tirando fotos no parque de Versalhes, nos arredores de Paris

As viagens ao exterior foram um privilégio conquistado com muito esforço pelo povo local durante a maior parte da existência da União Soviética. Foi apenas em 1991, após a queda da URSS, que os cidadãos russos ficaram livres para viajar ao exterior quando quisessem.

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