A derrota de Napoleão em 1812 foi devastadora. Em ‘Vida Política e Militar de Napoleão’, Antoine-Henri Jomini escreve que Napoleão implantou mais de 300 mil soldados na invasão da Rússia (o número total do Grande Exército era de mais de 600 mil na época).
Durante a Batalha de Berezina, de 26 a 29 de novembro, os últimos membros do Grande Exército tentaram fugir da Rússia, restando apenas entre 20 e 30 mil deles. Cerca de 90% do exército de Napoleão foi morto ou ferido durante a campanha russa.
No entanto, nos jornais europeus, a derrota não foi atribuída às proezas militares dos russos, mas sobretudo ao frio severo que o Exército francês enfrentou.
Como Napoleão criou o ‘General Inverno’
O jornal ‘Le Monitor universel’ era a principal arma de propaganda de Napoleão. Durante a campanha de 1812, o ‘Le Monitor’ publicava boletins que informavam os franceses sobre a guerra, sendo os textos muitas vezes de autoria do próprio Bonaparte. O imperador entendia que os soldados de seu exército também leriam os boletins e sentia a necessidade de encorajá-los durante a campanha. Os boletins, segundo a estudiosa Anastassia Nikiforova, enfatizaram os feitos dos soldados e mantinham silêncio sobre as vitórias do Exército russo.
Os boletins informavam regularmente os leitores sobre o clima. No dia 26 de outubro, o 24º boletim dizia: “O tempo está muito bom. A primeira neve caiu ontem. Em vinte dias, é necessário estar em nossos quartéis de inverno”. Porém, o boletim final, o 29º, que anunciou a derrota do Grande Exército, apresentava o clima como o pior pesadelo da campanha.
“Nos dias 14, 15 e 16 de novembro, o termômetro marcou 16 e 18 graus abaixo de zero. As estradas estavam cobertas de gelo; cavalos de cavalaria, artilharia e transporte de bagagem morriam todas as noites, não às centenas, mas aos milhares, especialmente alemães e franceses. Nossa cavalaria ficou sem cavalos, artilharia e bagagem, sem meio de transporte. Fomos obrigados a abandonar e destruir a maioria de nossas armas, munições e alimentos. O exército, que ainda estava em ordem no dia 6, parecia completamente diferente no dia 14; perdeu quase toda a cavalaria, a artilharia e os veículos”, lia-se no boletim.
Isso dava a entender que a geada sozinha, e não o Exército russo, teria privado os franceses de sua cavalaria e artilharia e, enfim, imposto a derrota. Mas os soldados franceses não sabiam do inverno desde antes? Claro que sim.
Em 1795, o Exército francês guerreou contra a Holanda durante um inverno rigoroso. Quando os exércitos russo e francês entraram em confronto na Batalha de Eylau (7 e 8 de fevereiro de 1807), as temperaturas estavam congelantes, mas, ainda assim, os franceses percorreram lagos e rios congelados durante uma nevasca. Portanto, o inverno não era exatamente uma novidade para eles.
No entanto, a lenda do frio mortal que Napoleão criou foi prontamente aceita não somente pelo público francês, mas também pela imprensa e pelo povo britânicos. A Grã-Bretanha ainda era um dos principais rivais internacionais da Rússia e não era favorável para eles elogiar as habilidades militares e estratégicas dos generais e oficiais russos. Acabava sendo mais conveniente dizer que o Exército francês foi derrotado por causa do frio – assim, os russos não pareciam tão poderosos e ameaçadores. A própria expressão “General Inverno” foi aparentemente cunhada por William Elmes, o criador da charge britânica ‘General Inverno barbeando pequeno Boney’ (vide acima).
Mas o que os russos têm a dizer sobre isso?
Fez realmente tanto frio?
Denis Davidov, general e comandante dos partidários em 1812, se opôs veementemente à ideia de que o exército de Napoleão fora derrotado apenas por causa do frio. Em seu artigo dedicado especialmente a este tema, Davidov cita Georges de Chambray, general da artilharia francês que participou da campanha e foi capturado pelos russos em Berezina:
“O frio, seco e moderado, que acompanhou as tropas de Moscou até a primeira neve, foi mais útil do que fatal [para o exército]. Em 27 de outubro, estava 5 abaixo de zero. Em 9 de novembro – 15 abaixo de zero, e em 12 e 13 de novembro – 21 abaixo de zero”, escreveu de Chambray. Esses dois últimos dias foram os mais frios e depois veio o degelo, o que impediu algumas das tropas francesas de invadir Berezina – o rio não congelou e milhares morreram na água.
O general Jomini também negou a sugestão de que o inverno fosse o principal motivo da derrota de Napoleão. “As principais razões para o fracasso da empreitada na Rússia foram atribuídas ao frio precoce e excessivo; todos os meus apoiadores repetiram essas palavras para se satisfazer. Isso é totalmente falso. Como eles podem imaginar que eu não sabia sobre o momento desse fenômeno anual na Rússia! Não apenas o inverno não chegou mais cedo do que o normal, mas sua chegada em 7 de novembro foi mais tarde do que acontece todos os anos”, escreveu Jomini. “Esse frio não excedeu o frio da campanha de Eylau. Mas, em Eylau, meu exército não se abalou, porque estava em uma terra de abundância e eu poderia satisfazer todas as suas necessidades. Em 1812 aconteceu o contrário: a falta de alimentos e de tudo o que era necessário fez com que as tropas se dispersassem.”
O que realmente levou à derrota?
Já se sabe como Mikhail Kutuzov atraiu Napoleão para Moscou, encurralando-o na capital, e que esta estratégia de destruir o exército de Napoleão pela exaustão foi na verdade concebida por Barclay de Tolly. Portanto, as principais razões para a derrota de Napoleão foram puramente militares, não relacionadas ao clima severo ou às baixas temperaturas.
Fato é que o Grande Exército, disperso e desorganizado, não contava com os suprimentos necessários. O movimento de guerrilheiros também desempenhou um dos papéis principais na derrota – em todos os lugares onde os camponeses russos se deparavam com soldados franceses, vidas não foram poupadas.
“Os camponeses da aldeia próxima exterminaram uma equipe do regimento de cossacos teptyars do Exército Imperial Russo, que consistia em sessenta homens”, relembra Davidov em suas memórias. “Os camponeses confundiram esses cossacos com o inimigo, por causa de sua pronúncia impura da língua russa”, acrescentou. Os teptyars eram basquires e sabiam russo – mas não tão bem o suficiente. Mesmo assim, os camponeses os mataram, tão grande era o ódio pelos invasores. Em tais tais condições, e também perseguido e atacado pelo Exército russo durante a retirada, o Exército francês não tinha chance.
Em seu livro ‘A Vida de Napoleão Bonaparte’, Sir Walter Scott se pergunta: “Se a geada e a neve na Rússia são desastres tão intransponíveis, poderosos o suficiente para destruir exércitos inteiros, então como essas circunstâncias não entraram nos cálculos de um general tão famoso [como Napoleão], que concebeu uma empreitada tão grande? Nunca neva na Rússia? A geada em novembro é um fenômeno raro por lá?”.
“Napoleão previu”, conclui Scott, “que o frio chegaria em outubro. Em julho, ele previu a necessidade de juntar suprimentos suficientes para a alimentação de seu exército. Mas, levado pela impaciência, em nenhum dos casos tomou medidas para superar a fome ou o frio, que ele previu”.
LEIA TAMBÉM: Estas foram as razões para a eclosão da Guerra de 1812 entre a Rússia e a França