‘Batismo de fogo’: por que os velhos crentes russos ateavam fogo a si próprios até a morte?

História
GUEÓRGUI MANÁEV
A tradição da autoimolação entre os velhos crentes russos durou dois séculos e foi um ato de protesto excepcional na Igreja Ortodoxa Russa.

Para alguns russos, a fé era questão de vida ou morte: e eles escolhiam a morte a desistir de sua fé. A tradição dos suicídios coletivos com fogo se iniciou entre os velhos crentes russos no século 17 e se estendeu até o século 19.

“Com o forte baque da explosão, o solo tremeu e todos sentiram uma rajada de ar no peito. Surgia entre as rachaduras do telhado uma fumaça, que se tornava cada vez mais densa... As chamas saltavam entre as toras da isbá [casa de madeira]. Quando os soldados irromperam pela porta, um homem em chamas caiu, com a cabeça queimada e preta. Ele rolou na neve como um bicho. Dentro do templo, fumaça e fogo giravam, e pessoas em chamas cambaleavam de um lado para outro. O fogo vinha do porão. [...] Os soldados deram alguns passos para trás por causa do calor insuportável. Aparentemente, não era possível salvar ninguém. Os soldados se benzeram, tirando os chapéus de três pontas, e alguns choravam. [...] Não havia como se esquivar do cheiro de carne queimada.”

É assim que Aleksêi Tolstói descreve um episódio de autoimolação em seu romance “Pedro, o Grande”. As autoimolações de seguidores da seita dos velhos crentes se iniciaram na Rússia durante o reinado do pai de Pedro, o tsar Aleixo da Rússia (1629-1676), devido às reformas religiosas iniciadas pelo monarca e pelo Patriarca Nikon (1605-1681, equivalente ao “Papa” da Igreja Ortodoxa Russa). As autoimolações logo ganharam um nome, “гари” (transliterado do russo, “gari”, que significa algo como “queimar”).

História do Cisma

Em 1596, Kiev rompeu relações com a Igreja Ortodoxa Russa e entrou em comunhão com o Papa de Roma. Assim, as igrejas ortodoxas da comunidade polaco-lituana passaram a ser igrejas católicas gregas. Foi um golpe duro para a Igreja Ortodoxa Russa, que perdeu paróquias, território e dinheiro. Devido a isso, em meados do século 17, o patriarca russo Nikon decidiu reformar a Igreja Ortodoxa Russa.

O patriarca Nikon convidou estudiosos do catolicismo de Kiev para corrigir os livros litúrgicos russos, que apresentavam muitos erros, em comparação com seus originais gregos — eles foram copiados diversas vezes por monges russos no decorrer dos séculos e precisavam de atualização.

Não existe um consenso entre os historiadores sobre o objetivo final de Nikon, e talvez ele também quisesse que a Igreja Ortodoxa Russa entrasse em comunhão com o Papa. Mas uma coisa é certa: a reforma levou ao Raskol (Cisma), ou seja, a divisão da Igreja Ortodoxa Russa. E foi assim que fazer o sinal da cruz com dois dedos em riste se tornou um símbolo do Raskol.

Por quê?

Em 1653, cartas do Patriarca foram enviadas a todas as igrejas de Moscou e, posteriormente, a todas as eparquias (ramos provinciais da Igreja) do Tsarado da Moscóvia. Essas cartas introduziam novas regras sobre as missas litúrgicas, e novos livros litúrgicos corrigidos foram impressos e distribuídos pelo país. Nikon usou a reforma para fortalecer sua autoridade como chefe de uma igreja russa renovada.

Entre as mudanças litúrgicas mais importantes, o sinal da cruz, antes feito com dois dedos em riste, ganhou mais um dedo, passando a ser feito com três; o nome de Jesus mudou sua grafia nos ícones etc. Hoje em dia, essas mudanças podem parecer pequenas, mas, no século 17, elas foram cruciais.

Os cristãos ortodoxos russos que negaram a reforma, taxando-a de "diabólica", já que as mudanças de Nikon mexeram com os símbolos mais sagrados da religião, eram chamados de “velhos ritualistas” ou, de maneira mais disseminada, “velhos crentes”.

Eles foram condenados no Grande Sínodo de Moscou de 1666 e não podiam mais participar dos sacramentos ortodoxos russos oficiais. Além disso, eles passaram a pagar o dobro dos tributos, além de serem proibidos de se reunir e organizar capelas. Foram essas punições que desencadearam as autoimolações coletivas.

Fim dos dias

Para os velhos crentes, não foi por acaso que eles foram condenados em 1666: eles sabiam que, pelo calendário Juliano, este ano era marcado pelo número do diabo.

Além disso, o “Livro de Cirilo”, um compêndio de textos religiosos popular no século 17, continha previsões sobre o “fim dos dias”, que ocorreria “durante o 8º milênio a partir de Adão”. Ele também dizia que o Papa seria o predecessor do Anticristo que governaria em Jerusalém — e Nikon tinha chamado seu novo terreno da Igreja próximo de Moscou de “Nova Jerusalém”.

Em 1654, uma epidemia de peste devastadora atingiu a Rússia, matando quase 800 mil pessoas. Em meio a isso, ocorreu o eclipse solar de agosto de 1654, provando ainda mais que o “fim do mundo” estava próximo. Além disso, o Grande Cometa de 1680 surgiu nos céus, como se citasse o Apocalipse 9: 1: “O quinto anjo tocou sua trombeta e vi uma estrela que havia caído do céu na terra. A estrela recebeu a chave do poço do Abismo.” Ele ficou no céu de novembro de 1680 a fevereiro de 1681.

Em 1666, ocorreu a primeira autoimolação dos velhos crentes, na região de Níjni Nôvgorod. E dezenas mais estavam por vir.

‘Batismo de fogo’

Março de 1666, região de Vologda: 17 mortos por autoimolação. Ano de 1672, Níjni Nôvgorod, 2.000 mortos por autoimolação. Ano de 1675, região de Vologda, mais 2.000 mortos por autoimolação. Em 1678, a autoimolação de Paleostrov, uma das maiores catástrofes do gênero, resultou na morte de mais de 2.700 pessoas, assistidas por soldados e oficiais enviados para impedir a tragédia. No total, houve na história da Rússia mais de 100 atos de autoimolação de velhos crentes registrados oficialmente.

Além disso, em 1685, o governo de Moscou, liderado por Sofia Alexeievna da Rússia (1657-1704) introduziu uma categoria de execução na fogueira para os velhos crentes que se recusassem a renunciar a suas crenças.

No início de 1682, Avvakum Petrov (1620-1682), líder dos velhos crentes e seu venerado santo, foi queimado vivo em uma cabana de toras em Pustozersk, região de Arkhânguelsk, contra sua vontade. A lei e a execução de Avvakum apenas aumentaram as autoimolações, que já estavam em pleno andamento na época.

Os velhos crentes não consideraram a autoimolação como suicídio, mas um martírio em protesto contra poderes civis anticristãos e uma Igreja corrupta. A autoimolação era cuidadosamente preparada sob a supervisão de um tutor dos velhos crentes (eles não tinham padres). Era construída também uma “casa para queimar”, ou seja, uma vasta estrutura de madeira que abrigaria os mártires.

Uma “casa para queimar” construída na região de Arkhânguelsk para autoimolação em 1685, por exemplo, abrigou 230 corpos. Normalmente a casa não tinha apenas um cômodo, e era algo mais parecido com várias cabanas de madeira reunidas, muitas vezes com dois ou mais andares. As “casas para queimar” típicas eram destinadas a abrigar dezenas de pessoas no ato da autoimolação.

A casa era então preenchida com feno, estopa de velas e outros materiais inflamáveis, entre eles, frequentemente, um barril ou dois de pólvora. As janelas e portas estavam prontas para serem lacradas por fora por outros velhos crentes que deviam ajudar os mártires em sua missão. Assim que os velhos crentes ouviam falar de qualquer formação militar vindo em sua direção, se trancavam dentro da construção e esperavam os soldados chegarem para atear fogo em si próprios.

Antes da autoimolação, todos os velhos crentes e seus filhos eram batizados simbolicamente novamente, já que deviam enfrentar um “batismo de fogo”. Muitos deles faziam votos monásticos. Mas nem todos eles eram corajosos a ponto de não querer desistir, por isso, dentro da “casa para queimar”, pessoas de confiança (que iam queimar com as outras) estavam armadas com rifles e machados para impedir quem tentasse escapar. De qualquer forma, a morte chegava logo para os pobres velhos crentes — não por queimaduras, mas por envenenamento com monóxido de carbono.

Frequentemente, quando a autoimolação começava, um tutor subia no telhado da construção e lia um sermão antes de cair no fogo e morrer também. Sermões por escrito também eram muitas vezes jogados para fora da casa em chamas. Para os velhos crentes, banidos e condenados, essa era a única maneira de se comunicar com as autoridades.

A maioria das autoimolações não podia ser impedida nem mesmo por soldados. Elas continuaram no século 18 e não pararam mesmo depois que a perseguição aos velhos crentes foi proibida por Catarina, a Grande, em 1762. Entre os anos de 1762 e 1825, foram registradas 23 autoimolações. Uma das últimas ocorreu no final de 1941, na região de Tuva, onde os velhos crentes locais tomaram a Segunda Guerra Mundial por outro “fim do mundo”.

Este artigo foi escrito com profundo respeito ao código moral e à história dos antigos rituais russos e tem apenas fins informativos. Os velhos crentes são chamados mais apropriadamente de “velhos ritualistas”, mas são mais conhecidos em línguas estrangeiras como “velhos crentes”.