Por que 500 africanos protestaram na Praça Vermelha em 1963?

Kira Lissítskaia (Foto: Boris Kosarev, Vsevolod Tarassévitch/МАММ/MDF)
Morte suspeita desencadeou protestos de estudantes estrangeiros, e o evento foi rapidamente politizado.

Em um dia frio de dezembro de 1963, estudantes negros de países africanos ocuparam a Praça Vermelha no primeiro grande protesto em Moscou desde os anos 1920. 

A morte de um estudante de medicina proveniente de Gana, que teria provocado os protestos, foi envolta em mistério. Nos dias que antecederam os protestos, as autoridades soviéticas perceberam padrões suspeitos e suspeitas de crime.

Morte misteriosa em Khovrino

Em 13 de dezembro de 1963, um corpo foi descoberto em um terreno baldio ao longo de uma estrada rural em Khovrino, um dos distritos no norte de Moscou. A vítima era um homem negro, e a polícia descobriu rapidamente sua identidade: Assare-Addo, um estudante de medicina de 29 anos oriuindo de Gana. A vítima apresentava um pequeno ferimento debaixo do queixo. Segundo os investigadores, o corpo foi descoberto em um local remoto demais para supor que Assare-Addo estivesse vagando por ali vagar acidentalmente, mesmo porque o estudante morava em outra cidade. A notícia se espalhou rapidamente dentro da comunidade de estudantes negros africanos que estudavam na União Soviética.

Grande aliado dos movimentos anticoloniais marxistas em todo o continente africano durante a Guerra Fria, a URSS concedeu a jovens de alguns países africanos diversas bolsas para estudar na União Soviética. Em 1960, o governo soviético estabeleceu, inclusive, uma nova universidade com o nome do líder da independência congolesa, Patrice Lumumba, para proporcionar educação a pessoas de países socialistas na África, Ásia e América Latina. Com o influxo de estudantes negros na sociedade soviética, incidentes isolados de conflitos raciais estavam fadados a acontecer, mas um assassinato jamais havia ocorrido antes.

Interior da Universidade Patrice Lumumba

Alguns estudantes vazaram uma história sobre o casamento de Assare-Addo com uma garota russa, que estava supostamente programado para acontecer no sábado, um dia após o corpo ter sido descoberto em Moscou. Uma das teorias dos manifestantes era de que o colega ganiano teria sido assassinado pelos parentes da jovem para impedir o casamento. Outra hipótese era de que Assare-Addo fora vítima de um ataque aleatório com motivação racial. A percepção da injustiça contra os negros africanos na União Soviética gerou protestos que se espalharam pela Praça Vermelha.

Alabama 2

Logo após a notícia da descoberta do corpo se espalhar entre os estudantes africanos em Moscou, manifestantes negros saíram às ruas. Reunindo-se na embaixada de Gana na capital russa, o grupo de 500 pessoas se dirigiu ao coração da URSS, a Praça Vermelha.

Os manifestantes, praticamente todos homens, carregavam cartazes com dizeres como “Moscou, uma segunda Alabama”, “Parem de matar africanos” e “É a mesma coisa em todo o mundo”. A polícia soviética fez uma tentativa tímida de bloquear o protesto, mas não foi capaz de impedi-los de acessar a Praça Vermelha. Não houve qualquer detenção, talvez por considerações políticas. Uma vez lá, os manifestantes se reuniram nos Portões Spasskie do Kremlin, onde deram entrevistas a correspondentes ocidentais.

Manifestação na Praça Vermelha

Na esperança de dissipar a multidão furiosa e manter a situação sob controle, as autoridades decidiram negociar. O ministro da Educação soviético, Viatcheslav Eliutin, convidou alguns representantes dos estudantes africanos para conversas. Eliutin lidou com a situação com habilidade, o ministro expressou condolências pela morte de Assare-Addo e propôs um minuto de silêncio em sua homenagem, o que temporariamente aplacou os manifestantes.

Em seguida, Eliutin começou a discursar:

“Temos um país grande e é possível encontrar pessoas isoladas que são más, assim como em qualquer país, há uma pequena quantidade de pessoas dispostas a cometer atos de vandalismo. Esses indivíduos isolados podem, é claro, ofender um cidadão soviético ou estrangeiro. Mas é inadmissível e incorreto generalizar ou tirar conclusões com base em tais casos, se porventura acontecerem, ou falar sobre as relações do povo soviético com vocês baseado nisso. Isso é algo que qualquer pessoa objetiva e sem preconceitos deve entender. Também nunca aconteceu e nenhum de vocês pode dizer que ocorreu, que um de nossos reitores, professores ou funcionários do ministério tenham deixado escapar um palavrão ou tomado uma atitude ruim em relação a vocês.”

Estudantes da universidade em Moscou nomeada em homenagem ao líder da independência congolesa Patrice Lumumba

A linha que as autoridades soviéticas tomaram em relação aos protestos foi igualmente astuta: depois de aplacar a indignação inicial, prometeram uma investigação ampla sobre a morte do estudante de medicina. Também denunciaram os protestos - que acreditavam favorecer os imperialistas, além de prejudicar a imagem da União Soviética - usando jornais e canais acadêmicos e lidando impiedosamente com os instigadores mais ativos.

Motivos ocultos

A autópsia conduzida por um médico soviético e acompanhada por dois estudantes de medicina de Gana, convidados a comparecer ao procedimento por uma questão de transparência, não revelou sinais de morte violenta. Segundo o parecer final, a morte teria sido “efeito do frio em um estado de estupor induzido pelo álcool”. Assare-Addo não foi vítima de crime de ódio; em vez disso, foi um acidente infeliz e, talvez, o descuido que o matou.

Alunos da Universidade Patrice Lumumba, em Moscou

Embora nem todos tenham ficado satisfeitos com o relatório do legista oficial, as autoridades agiram rapidamente para encerrar o caso e abordar outro mistério, mais politicamente preocupante: como os estudantes africanos conseguiram se mobilizar tão rapidamente?

As autoridades soviéticas estavam perplexas com alguns detalhes acerca dos protestos. O corpo foi descoberto em 13 de dezembro, e a manifestação ocorreu em 18 de dezembro. No entanto, o Ministério da Educação teria sido notificado por universidades de Leningrado e Kalinin de que estudantes ganianos dessas cidades haviam sido convocados a Moscou para participar de um evento na Embaixada de Gana já em 9 de dezembro. Questionado, o órgão disse que não convocou os alunos e que não havia nenhum evento planejado para a data.

Curiosamente, as autoridades concluíram que Assare-Addo - que estudava em Kalinin - estaria provavelmente a caminho do “evento” na Embaixada quando morreu. No mesmo dia, centenas de estudantes de Gana e outros países africanos demonstraram indisciplina, levando o embaixador e sua esposa a se barricar em uma sala no último andar do edifício.

Diversas teorias foram aviltadas quanto às origens da convocação e do protesto. Alguns possíveis culpados foram nomeados não oficialmente, incluindo algumas embaixadas ocidentais e até mesmo o errático presidente ganês, Kwame Nkrumah, que poderia ter seus motivos. No entanto, as autoridades soviéticas decidiram não apontar o dedo a nínguem.

O governo da URSS encerrou o caso Assare-Addo, expulsou os estudantes africanos mais beligerantes, desacreditou o protesto aos olhos da comunidade acadêmica e, por fim, fortaleceu a educação ideológica para estudantes estrangeiros. E assim terminou o grande protesto de estudantes africanos na União Soviética.

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