Por que Stálin rebaixou um de seus marechais durante a Segunda Guerra Mundial?

Kira Lissítskaia (Foto: Domínio público; Serguêi Kórchunov/МАММ/МDF)
Grigóri Kulik foi um comandante de artilharia brilhante, mas teve diversos fracassos. Ele só foi reabilitado postumamente por Khruschóv.

Tornar-se marechal na União Soviética era o sonho de qualquer comandante do Exército Vermelho. Foram generais como Jukov, Rokossóvski, Vassilévski, Konev, Meretskov e Gôvorov que tornaram possível a vitória sobre a Alemanha nazista na Grande Guerra Pátria (como os russos chamam sua participação na Segunda Guerra Mundial).

No entanto, entre todos aqueles “marechais da vitória” havia um “marechal da derrota”: Grigóri Ivánovtich Kulik. Ele teve diversas chances de provar seu valor no campo de batalha, mas falhou em todas.

Grigóri Kulik.

Kulik dedicou toda a vida à artilharia. Durante a Primeira Guerra Mundial, ele subiu na hierarquia, passando de soldado a bombardeiro-sênior (um suboficial-sênior de artilharia). Na Guerra Civil Russa, ele comandou com sucesso unidades e subunidades de artilharia.

Durante a defesa de Tsarítsin (que mais tarde foi rebatizada como Stalingrado e Volgogrado), Kulik conheceu Stálin e conseguiu estabelecer boas relações com o futuro chefe de Estado e, após a guerra, tornou-se chefe da Diretoria Principal de Artilharia do Exército Vermelho.

Tanques britânicos em Tsatítsin.

“Ao contrário de alguns de seus subordinados, ele não tinha medo da responsabilidade e sempre fez de tudo para melhorar a capacidade de defesa do país de acordo com o seu próprio entendimento. Ele tomava decisões mais do que arriscadas”, escreveu o armeiro de artilharia Vassíli Grâbin.

Por exemplo, no auge das repressões em massa no país, Kulik enviou uma carta a Stálin expressando sua preocupação com os expurgos no comando do Exército Vermelho — que, em sua opinião, minavam a capacidade de combate da União Soviética.

Durante a luta contra os japoneses no rio Khalkhin-Gol, em julho de 1939, no momento mais crítico do confronto militar, Kulik, responsável pela artilharia, tentou intervir no comando geral da campanha, realizada por Gueórgui Jukov. Como resultado, Kulik foi reprimido por Moscou e chamado de volta à capital.

O início da guerra contra a Finlândia foi mais um fracasso, tanto para Kulik, quanto para todo o comando soviético. Mais tarde, porém, foi a artilharia treinada por Kulik que desempenhou papel crucial no rompimento da Linha Mannerheim, em fevereiro de 1940.

Gueórgui Jukov na Mongólia.

Em 21 de março do mesmo ano, Kulik recebeu o título de Herói da União Soviética “pela exemplar execução das tarefas de combate no comando da Guerra Soviético-Finlandesa” e, em 7 de maio, o posto de marechal.

Frente Ocidental

Após o início da invasão alemã à União Soviética, o marechal Kulik foi despachado para a Frente Ocidental para fornecer assistência a seu comando. No entanto, quase imediatamente após sua chegada, sua unidade foi cercada.

“O comportamento do vice-comissário do povo (equivalente a vice-ministro) para a Defesa, marechal Kulik, não era claro”, escreveu mais tarde o chefe da 3° seção do 10º Exército, comissário regimental Los.

“Ele ordenou que todos retirassem suas insígnias, se livrassem de seus documentos de identidade e vestissem roupas de camponeses. Ele mesmo se vestiu com roupas de camponês. Ele não tinha documentos, não sei se trouxe consigo de Moscou, e mandou deixar as armas e as condecorações militares e documentos. No entanto, com exceção de seu ajudante de campo, um major, ninguém obedeceu. Segundo ele, se fôssemos capturados pelo inimigo, ele pensaria que éramos camponeses e nos libertaria.” 

As unidades cercadas conseguiram se reunir com outras formações do Exército Vermelho apenas duas semanas depois. O fiasco seguinte do marechal foi a primeira ofensiva de Siniávino, em setembro de 1941, quando Kulik não conseguiu romper o cerco de Leningrado com as forças do 54º Exército reforçado.

Um dos principais motivos da derrota foi mais um conflito entre Kulik e Jukov, que, na época, ocupava o posto de comandante da Frente de Leningrado e dirigia a ofensiva a partir da cidade sitiada. Os dois não chegaram a um acordo sobre ações coordenadas conjuntas.

“Lembro-me desse homem com um sentimento amargo”, escreveu outro marechal, Aleksandr Vassilévski, em suas memórias. “No início da guerra, ele fez um péssimo trabalho ao cumprir os comandos do Quartel-General no oeste e também não conseguiu comandar um dos exércitos perto de Leningrado. Por suas desagradáveis qualidades pessoais, não gozava do respeito das tropas e não sabia como organizá-las.”

“Kulik era uma pessoa desorganizada, que considerava todas as suas ações infalíveis. Muitas vezes era difícil entender o que ele queria, o que ele estava buscando. Ele achava que a melhor maneira de trabalhar era manter seus subordinados com medo. Seu lema favorito ao definir tarefas era: ‘prisão ou prêmios’”, escreveu o marechal de artilharia Nikolai Vôronov.

Ponto final

A paciência de Stálin com Kulik acabou após os acontecimentos de novembro de 1941 na Crimeia. Como representante do Quartel-General do Alto Comando Supremo, Kulik recebeu a ordem de fazer todo o possível para não render a cidade de Kertch, no leste da península.

Porém, ao ver as tropas enfraquecidas e desorganizadas, o marechal deu ordem de evacuá-las pelo estreito, para a Península de Tamagne, onde pretendia estabelecer linhas de defesa.

Batalha por Rostov-no-Don.

No final da década de 1950, a investigação de uma comissão especial chegou à conclusão de que, sob essas circunstâncias, tinha sido impossível manter a cidade sob controle. No entanto, durante a guerra, o Alto Comando acusou Kulik de prevaricação militar. Além disso, o marechal foi acusado de ter cedido a cidade de Rostov-no-Don.

“O crime de Kulik consiste em não ter aproveitado as oportunidades disponíveis para defender Kertch e Rostov, não ter organizado sua defesa e ter se comportado como um covarde, amedrontado pelos alemães, como um derrotista que perdeu o sentido de perspectiva e não acreditou em nossa vitória sobre os invasores alemães”, lê-se em ordem despachada por Stálin, que, em 19 de fevereiro de 1942, rebaixou Kulik do posto de marechal e o privou do título de Herói da União Soviética, bem como de todos seus prêmios.

Marechal Grigóri Kulik em 1940.

Grigóri Kulik foi rebaixado ao posto de major-general e continuou envolvido em operações militares de forma limitada, mas nunca obteve sucesso. A certa altura, ele foi promovido a tenente-general e recebeu de volta algumas de suas condecorações, mas, após trabalho considerado insatisfatório na Direção Principal de Formação e Pessoal do Exército Vermelho, ele foi novamente rebaixado a major-general.

Kulik nunca se considerou responsável por esses fracassos e sempre acusava a liderança do país. No início de 1947, Kulik foi preso, junto com os generais Vassíli Gôrdov e Filipp Ribáltchenko. Eles foram executados três anos depois sob a acusação de “organização de grupo conspiratório para combater o poder soviético”.

A última foto de Kulik.

Mais tarde, o secretário-geral da URSS Nikita Khruschov reabilitou Kulik postumamente no posto de marechal, devolveu seu título de Herói da União Soviética e o direito às honras estatais.

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