O primeiro aerovagão da URSS (e a história sombria por trás dele) 

História
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Este deveria ter se tornado o primeiro trem de alta velocidade da Rússia, mas, em vez disso, o projeto foi mantido como refém em meio a uma feroz luta revolucionária.

Qual seria o cruzamento de um trem com um avião? Um veículo que voasse sobre trilhos?

A pergunta foi feita há 100 anos por engenheiros de todo o mundo. As locomotivas, cujas vantagens continuavam superando suas deficiências, eram bastante populares e não tinham pressa em desaparecer. No entanto, havia constantes tentativas de transformá-las em algo mais promissor. Torná-las mais rápidas era a primeira ordem do dia. E a ideia de acoplar um motor de avião e uma hélice a um trem se tornou uma das mais populares.

O primeiro a fazer acontecer foi o alemão Otto Steinitz em 1919. Seu protótipo de vagão autopropulsado com sistema de motor de avião Dringos podia atingir de 120 a 150 km/h.

No entanto, a locomotiva a hélice Dringos nunca foi produzida em massa: o Tratado de Versalhes, de 1919, proibia a Alemanha de fabricar e utilizar motores de aeronaves. Apesar disso, um ano depois, um maquinista soviético tentou realizar o mesmo projeto.

Versão soviética

Seu nome era Valerian Abakovski. Nascido no Império Russo, Abakovski se encontrava em Tambov (460 km de Moscou) após a Revolução de 1917, onde trabalhava como motorista da força de segurança contrarrevolucionária local. Na época com 24 anos, adorava tecnologia, e a notícia do recente experimento Dringos chegou até ele.

No início dos anos 1920, teve que argumentar veementemente para ser autorizado a entrar na oficina ferroviária de Tambov, onde, ao ser aceito, construiu seu primeiro aeromóvel. 

Não há registro sobre a formação de Abakovski, mas o projeto recebeu reconhecimento especial, especialmente porque seria adequado para transportar rapidamente funcionários de alto escalão do governo e materiais sensíveis.

Para obter um design mais aerodinâmico, a frente da cabine foi feita em forma de cunha, com o teto ligeiramente inclinado. Na parte dianteira havia um motor de avião que girava uma hélice de madeira de duas pás com quase três metros de diâmetro, enquanto as partes central e traseira da cabine eram destinadas a transportar até 25 passageiros.

O vagão de Abakovski pode atingir até 140 km/h de velocidade. Os testes começaram no verão de 1921 e, em meados de julho, o vagão havia percorrido mais de 3.000 quilômetros. O projeto foi considerado um sucesso, e os construtores decidiram então testá-lo com pessoas importantes a bordo. Este foi um erro crasso.

A catástrofe da estrada de Kursk

Em julho de 1921, o surgimento do aerovagão foi muito oportuno. Em Moscou estavam acontecendo simultaneamente várias sessões da Internacional Comunista com delegados estrangeiros. Os bolcheviques decidiram que era melhor falar do significado da Revolução Russa na presença do poder que a impulsionou: o proletariado. 

À frente da delegação estava Fiódor Serguéiev, conhecido como “Camarada Artiom” e amigo íntimo de Stálin. Serguéiev fundou a República Soviética de Donetsk-Krivoi Rog em 1918, conhecida entre as pessoas como a “República do Donbass”. A excursão planejada incluía uma visita a uma bacia de carvão nos arredores de Tula.

Na manhã de 24 de julho, Artiom, junto com Abakovski, os comunista alemão Oscar Gelbrich e australiano John Freeman, além de outros estrangeiros, partiram para conhecer os mineiros soviéticos. O “aerovagão de vanguarda” viajou a 40-45 km/h, levando os delegados com segurança primeiro para o local da mina e depois para a fábrica de armas de Tula.

Depois de visitar um teatro para a sessão cerimonial do Conselho local, a delegação teve pressa em voltar, e o trem viajou a 80-85 km/h. Às 18h35, a cerca de 111 quilômetros de Moscou, perto de Serpukhov, o aerovagão descarrilou a toda velocidade e “voou em pedaços”. Dois dias depois, o jornal Pravda publicou uma matéria com a seguinte manchete: “Catástrofe na estrada para Kursk”. O texto relatava que “das 22 pessoas a bordo, seis morreram: Otto Strunat (Alemanha), Gelbrich (Alemanha), Hsoolet (Inglaterra), Konstantinov Iv. (Bulgária), o presidente do Comitê Central do Conselho de Mineiros, o camarada Artiom (Serguéiev) e o camarada Abakovski”.

Resposta política?

Mais tarde, o motivo oficial da tragédia seria atribuído à qualidade das ferrovias russas: o aerovagão supostamente topou com um buraco na via e acabou descarrilando. A investigação foi encerrada, juntamente com a pesquisa e o desenvolvimento do aerovagão.

No entanto, o filho do camarada Artiom, Artiom Fiodórovitch Serguéiev, um dos fundadores das forças de mísseis antiaéreos da URSS, desenvolveu uma teoria diferente, que amadureceu ao longo dos anos (ele tinha apenas quatro anos na época do incidente; três dias após a tragédia, foi adotado pelo próprio Stálin). Mais tarde ele se lembraria:

“Como diria Stálin, se um acidente tem consequências políticas, ele merece um exame mais detalhado. Acontece que uma pilha de pedras atrapalhou o aerovagão. Além disso, havia dois grupos com opiniões diferentes. Um deles encabeçado por Enukidze [Avel Enukidze, secretário do Comitê Eleitoral Central e padrinho da esposa de Stálin], que via culpa na construção defeituosa do próprio vagão. Mas Dzerjinski [Féliks, o pai dos serviços de segurança soviéticos] disse à minha mãe que tudo aquilo exigia uma investigação mais profunda: pedras não caem do céu.”

“Para neutralizar a influência de Trótski, por ordem de Lênin, Artiom criou a União Internacional de Mineiros. O comitê diretor foi criado dias antes da tragédia. E, naquela época, Trótski exercia um enorme poder: a maioria do Exército estava do seu lado, assim como a pequena burguesia...”, acrescentou.

Leon Trótski, um dos líderes da Revolução, era quem tinha mais chances de chegar ao poder caso Lênin morresse. Em 1940, já no exílio, foi assassinado no México, por ordem de Stálin. Na opinião de Serguéiev, Trótski estaria por trás do plano que levou à morte de seu pai.

Após a falha, ninguém tocou no projeto do aerovagão novamente até 1970, quando uma versão com dois motores AI-25 montados no teto foi construída. O vagão atingia 250 k/h rapidamente, e os testes foram usados ​​para o desenvolvimento da próxima geração de trens.

No entanto, após os testes, o veículo permaneceu inativo, estacionado em uma estação e gradualmente abandonado. Em 2008, o nariz, junto com os motores a jato, foi desmontado, pintado e reutilizado como monumento ao 110º aniversário da Fábrica de Vagões de Tver.

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