Em maio de 1933, mais de 6.000 pessoas que estavam sendo deportadas para a Sibéria como parte das represálias em curso foram transferidas em barcaças para uma pequena ilha desabitada no rio siberiano Ob. Sob o olhar atento de guardas, os chamados “elementos socialmente prejudiciais e desclassificados” da sociedade soviética estavam esperando para serem enviados para campos de trabalho forçados mais a leste do país.
Por quase um mês, eles foram deixados à própria sorte, praticamente sem comida, em um pequeno pedaço de terra. Sem saída, não demorou muito para que alguns ultrapassassem a linha da normalidade e começassem a comer seus semelhantes.
Todos sem distinção
Tudo começou com a decisão da União Soviética de retomar o sistema de passaportes que havia sido abolido após a Revolução de 1917. Na época, a liderança bolchevique aboliu os passaportes que funcionavam como meio de controlar o movimento popular dentro do país. Acreditava-se que um soviético poderia viver e trabalhar onde bem quisesse.
Mas percebeu-se que as massas de camponeses, depois de experimentar todas as adversidades da política econômica soviética (luta contra os camponeses ricos e a propriedade privada, a criação de fazendas coletivas etc.), decidiram migrar para as cidades em busca de uma vida melhor - o que, por sua vez, resultou em escassez aguda de moradias disponíveis para o principal pilar do regime dominante: o proletariado.
Os trabalhadores se tornaram o principal grupo da população a receber passaportes a partir do final de 1932. Enquanto isso, os camponeses (com raras exceções) não tiveram o direito de obter passaportes até 1974.
Junto com a introdução do novo sistema de passaportes, as grandes cidades realizaram “operações de limpeza” para expulsar aqueles que não possuíam os papéis que os autorizavam a morar ali. Além dos camponeses, esses expurgos e prisões miravam todos os tipos de “elementos anti-soviéticos” e “desclassificados”. Estes incluíam exploradores, mendigos, prostitutas, ex-padres e outras categorias não envolvidas em trabalho que fosse considerado socialmente útil. Suas propriedades (se as tivessem) eram apreendidas e eles, enviados para vilarejos especiais na Sibéria, onde trabalhariam para o bem do Estado.
A liderança soviética acreditava que, desse modo, estava resolvendo dois problemas com uma única tacada: por um lado, excluindo das cidades os elementos vistos como estranhos e hostis e, por outro, povoando a quase deserta Sibéria.
Os agentes da Polícia e os oficiais do serviço de segurança da OGPU (do russo, Diretório Político Unificado do Estado) eram tão rígidos em suas batidas de passaporte que muitas vezes detinham nas ruas até mesmo as pessoas que haviam recebido um passaporte, mas não o portavam na ocasião. A lista de “infratores” podia incluir um aluno que fosse visitar parentes ou um motorista de ônibus que saiu para comprar cigarros. Certa vez, até mesmo o chefe de um departamento de polícia de Moscou e os dois filhos do promotor da cidade de Tomsk foram presos. O pai conseguiu resgatá-los rapidamente, mas nem todos os que foram pegos por engano tinham parentes de alto escalão para socorrê-los.
Os “infratores do regime de passaportes” não eram submetidos a nenhuma verificação. Eram considerados culpados quase que imediatamente e então enviados para campos de trabalhos forçados no leste do país. Para piorar a situação, essas pessoas aguardavam a deportação para a Sibéria junto com criminosos da pesada, que eram para lá enviados para aliviar o fardo dos campos de prisioneiros superlotados na parte europeia do país.
‘Ilha da Morte’
A história de um dos primeiros grupos de deportados acabou ficando conhecida como a tragédia de Nazino.
Em maio de 1933, mais de 6.000 pessoas foram levadas em barcaças para uma pequena ilha deserta no rio Ob, perto do vilarejo de Nazino, na Sibéria. Elas deveriam ficar ali temporariamente, enquanto o governo resolvia problemas com acomodação nos campos de trabalho, que não estavam prontos para receber um número tão grande de novos residentes.
Os deportados ainda estavam vestidos com as roupas que usavam quando foram detidos nas ruas de Moscou e Leningrado (atual São Petersburgo). Também não possuíam nenhuma roupa de cama ou ferramentas para construir um abrigo temporário.
No segundo dia, a ilha foi tomada por fortes ventanias, a temperatura caiu abaixo de zero e então começou a chover. Sem qualquer defesa, tudo o que os prisioneiros podiam fazer era sentar-se ao redor de fogueiras ou vagar pela ilha em busca de cascas e musgos, já que ninguém se dera ao trabalho de lhes fornecer comida. Somente no quarto dia trouxeram um pouco de farinha de centeio, mas apenas algumas gramas por pessoa. Tendo recebido aquelas parcas rações, as pessoas logo correram para o rio, onde usaram seus chapéus, bandagens, jaquetas e calças como recipientes para fazer uma espécie de mingau.
Em poucos dias, centenas de deportados já haviam morrido. Com fome e frio, eles dormiam perto das fogueiras e acabavam queimando vivos ou morrendo de exaustão. Alguns também foram vítimas da brutalidade dos guardas, que espancavam as pessoas com a coronha de suas espingardas. Escapar daquela “ilha da morte” era impossível, pois estava cercada por pessoas armadas com metralhadoras, que atiravam imediatamente em quem tentasse fugir.
‘Ilha dos Canibais’
Os primeiros casos de canibalismo na Ilha Nazinski ocorreram no décimo dia após os deportados terem sido despejados ali. O movimento começou com os criminosos perigosos. Acostumados a condições brutais, formaram gangues que aterrorizavam os demais.
Os moradores de uma aldeia próxima tornaram-se testemunhas involuntárias do pesadelo que se desenrolava na ilha. Uma camponesa, então com 13 anos, lembrou, mais tarde, de quando uma jovem foi cortejada por um dos guardas. “Quando ele saiu, as pessoas agarraram a menina, amarraram-na a árvore e esfaquearam-na até à morte, comendo tudo o que podiam. Eles estavam com fome. Por toda a ilha, podia-se ver carne humana sendo rasgada, cortada e pendurada nas árvores. As clareiras estavam cheias de cadáveres.”
“Eu escolhia aqueles que não estavam mais vivos, mas também ainda não estavam mortos”, testemunhou um prisioneiro chamado Uglov, acusado de canibalismo, durante interrogatórios posteriores. “Dava para ver quando alguém era um caso perdido, que morreria de qualquer maneira em um ou dois dias. Portanto, seria mais fácil para eles morrerem agora, imediatamente, em vez de sofrer por mais dois ou três dias”, continuou.
Theophila Bilina, outra moradora da aldeia de Nazino, também descreveu o cenário na ilha: “Os deportados às vezes vinham ao nosso apartamento. Uma vez, uma senhora veio da Ilha da Morte. Eu vi que as panturrilhas dela tinham sido decepadas. Quando perguntei, ela disse: "Elas foram cortadas na Ilha da Morte e grelhadas". Toda a carne de suas panturrilhas tinham sido cortadas. Suas pernas estavam congelando, e a mulher as envolveu em trapos. Mas ela conseguia andar sem ajuda. Parecia velha, mas na realidade devia ter uns 40 anos”.
Um mês depois, as pessoas famintas, doentes e exaustas, que sobreviviam com pequenas rações de comida distribuídas ocasionalmente, foram evacuadas da ilha. No entanto, sua provação não havia terminado. Elas continuaram morrendo nos assentamentos siberianos, tentando sobreviver com rações escassas nos barracões frios e úmidos não aptos para viver. No final, das 6.000 pessoas, pouco mais de 2.000 sobreviveram.
Tragédia secreta
Essa tragédia não teria ficado conhecida para além dos moradores locais se não fosse por Vassíli Velitchko, instrutor do comitê distrital de Narim do Partido Comunista. Ele foi enviado a um dos assentamentos de trabalho forçado em julho de 1933 para relatar como os “elementos desclassificados” estavam sendo realocados com sucesso, mas, em vez disso, mergulhou em uma investigação do que havia acontecido.
Velitchko enviou um relatório detalhado, baseado no testemunho de dezenas de sobreviventes, ao Kremlin, criando uma grande comoção. Uma comissão especial foi então enviada a Nazino para conduzir uma investigação completa. Ali, os investigadores encontraram 31 valas comuns, com 50 a 70 cadáveres em cada uma delas.
Mais de 80 deportados e guardas foram processados criminalmente, incluindo 23 que acabaram sendo condenados à morte por “saqueamento e agressão” e 11 por canibalismo.
Assim que a investigação terminou, os detalhes do caso foram classificados, juntamente com o relatório de Vassíli Velitchko. Ele perdeu o emprego como instrutor do Partido, mas não foi sujeito a outras sanções. Tornando-se correspondente de guerra, Velitchko sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e escreveu vários romances sobre as transformações socialistas na Sibéria, mas nunca ousou escrever sobre a “Ilha da Morte”.
O público em geral tomou conhecimento da tragédia de Nazino apenas no final dos anos 1980, pouco antes da dissolução da União Soviética.
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