Como a abolição da servidão levou à Revolução Russa?

“Pobres perto da igreja”. Pintura de Serguêi Vinogradov, 1899.

“Pobres perto da igreja”. Pintura de Serguêi Vinogradov, 1899.

Smolensk State Museum Reserve
A reforma de emancipação russa de 1861 acabou levando o país a um verdadeiro caos, e a abolição da servidão na prática saía apenas no papel.

A abolição da servidão na Rússia foi um processo complexo e multifacetado que levou décadas e ainda não tinha sido concluído quando da Revolução de 1917. A maioria dos russos não entende até hoje a servidão e sua abolição.

Barril de pólvora prestes a explodir

Retrato de Nicolau 1° da Rússia.

Durante um longo período — de meados do século 17 até a abolição da servidão em 1861 — os camponeses estiveram presos à terra. Eles podiam ser comprados e vendidos, como os escravos, e seus direitos humanos eram desrespeitados. Na esteira da Revolução Francesa, que proclamou a liberdade pessoal como um direito humano básico, a servidão precisava ser abolida.

O imperador Nicolau 1° organizou pelo menos dez comitês secretos para discutir a abolição da servidão durante todo o seu reinado, de 1826 até sua morte, em 1855. Ele entendia que os camponeses deveriam ter a propriedade de suas terras e pediu a seu filho, Alexandre 2°, que não os privasse disso, evitando um desastre nacional. Nicolau dizia que a servidão era um “depósito de pólvora sob o Estado”. Ele dizia que a abolição era “a ação mais necessária” que deixava ao filho.

A abolição da servidão também era considerada necessária porque, nas décadas de 1840 e 1850, especialmente após a devastadora Guerra do Leste, os levantes e revoltas camponeses aumentaram enormemente. O fósforo estava aceso.

A reforma foi planejada pelos proprietários de terras

O tsar Alexandre 2°, imperador da Rússia entre 1870 e 1886.

Depois do reinado de Nicolau 1°, 37 por cento dos camponeses russos eram servos (cerca de nove milhões de pessoas). Mas aqueles que tinham se tornado proprietários viviam uma crise financeira eterna. Dois terços de suas propriedades tinham sido hipotecados ao Estado e os nobres não negociavam, por isso os proprietários de terras eram ferrenhamente contrários à reforma.

Em 1857, um plano foi elaborado para a reforma, mas os proprietários, membros da comissão para a reforma, opuseram-se fortemente e, em 1859, o plano foi alterado em favor dos proprietários. Os camponeses ganharam sua liberdade, mas ainda não tinham terras: este era o pior cenário previsto por Nicolau 1°. O Manifesto de Emancipação foi assinado em 19 de fevereiro de 1861.

Reforma foi ruim para servos e donos de terras

Primeira página do Manifesto de 19 de fevereiro de 1861.

Os camponeses conquistaram a liberdade pessoal. Para se sustentar, eles receberam pequenos lotes (de cerca de 3,5 hectares) que o Estado adquiriu dos proprietários. Esses pequenos lotes, no entanto, eram emprestados aos camponeses pelo Estado com juros de 5,6% ao ano. E eles não podiam deixar ou vender essas terras por 49 anos a partir do empréstimo.

Os proprietários receberam as melhores terras, deixando seus camponeses com lotes inférteis ou pântanos. A liberdade para os camponeses estava apenas em seu recém-instalado autogoverno comunitário. Em todos os outros aspectos, suas vidas continuaram intocadas.

Os proprietários também foram pressionados. O Estado pagava esses proprietários por seus ex-servos com títulos (ações) que podiam ser trocados, mas custavam muito menos que seu valor nominal. O Estado devia pagar aos proprietários 902 milhões de rublos (por cerca de nove milhões de servos), mas reteve 316 milhões pelas dívidas de proprietário. Para efeito de comparação, o orçamento anual da Rússia, na época, era de 311 milhões de rublos.

O escritor russo Ivan Turguêniev em Baden-Baden.

Esse valor era suficiente? Bem, um senhorio com uma propriedade com 300 servos era considerado rico na época, mas, após a reforma, um proprietário que tinha 300 servos receberia 30.000 rublos por eles. Esse valor podia sustentar o estilo de vida luxuoso de uma família de nobre por apenas cinco ou seis anos.

Esse capital precisava ser investido ou depositado em uma conta bancária. Mas os nobres não sabiam como usar o dinheiro em espécie. O historiador Semiôn Ekchtut escreveu: “A nobreza considerou esta quantia como uma compensação por sua perda, não como um capital inicial. A nobreza não investiu seu dinheiro no desenvolvimento do país, preferindo torrá-lo no exterior.”

A reforma não foi eficaz economicamente

“Um leilão de dívidas”, pintura de Vassíli Maksimov, 1880-1881.

Nos livros de história soviéticos lia-se que a servidão devia ter sido abolida porque atrapalhava o crescimento econômico, já que camponeses livres trabalhavam melhor. Infelizmente, isto não é verdade. O pesquisador e matemático Aleksander Malakhov argumenta que um escravo norte-americano médio trabalhava 2,6 vezes mais que um servo russo.

Os servos eram forçados a trabalhar por seus proprietários por meio de castigos corporais e taxas, mas os “servos do Estado”, que tinham liberdade e pagavam impostos ao Estado, trabalhavam pior e menos que os privados: os “servos do Estado” plantavam 42 por cento menos sementes e tinham 16% menos produtividade. Assim, após o alívio nos impostos e na jornada de trabalho que a reforma trouxe, os camponeses começaram a trabalhar menos, e não mais. Mesmo que houvesse algumas pessoas ricas e bem-sucedidas entre eles, que conseguiam abrir seus próprios negócios, elas ainda eram uma minoria.

A reforma levou a vários motins camponeses

Imediatamente após o Manifesto, iniciaram-se muitos levantes camponeses. Para os camponeses, a reforma era “falsa”, pois os deixava nas mesmas condições de antes: trabalhando para o proprietário. Assim, muitos camponeses se revoltaram e pararam de trabalhar.

Em março de 1861, regimentos do exército foram enviados a nove (de um total de 65) regiões russas para impedir os tumultos. Em abril, 29 províncias tinahm se rebelado, em maio, já eram 38. No total, em 1861, aconteceram 1.176 revoltas. Em 1863, elas somavam mais de 2 mil, com mais de 700 reprimidas pelo exército. Não era uma guerra de camponeses, mas o assustador é que os camponeses realmente pagavam mais que o custo da terra.

Em 1855, o custo total das terras camponesas era de 544 milhões de rublos, mas os camponeses deviam pagar 844 milhões de rublos por elas (levando em consideração o aumento anual de 5,6%), e o custo só crescia com o tempo: em 1906, os camponeses pagaram 1,57 bilhão de rublos por essas terras (o triplo do custo). Os camponeses empobrecidos começaram a buscar renda nas cidades, onde eram privados de suas famílias e terras nativas, estavam irados e prontos para revoltar-se contra um Estado corrupto que os havia roubado.

Reforma diminuiu a riqueza dos nobres e empobreceu o campesinato

“Pobres perto da igreja”. Pintura de Serguêi Vinogradov, 1899.

Quase todas as famílias nobres da Rússia estavam quebradas no início do século 20. Até mesmo na peça de Anton Tchékhov “O Jardim das Cerejeiras”, o criado Firs considera a emancipação dos servos russos "um desastre" para os camponeses e seus proprietários.

A nobreza perdeu todo seu dinheiro e não sabia como trabalhar ou negociar, por isso era inútil ao Estado. E os ex-camponeses agora haviam se transformado na classe trabalhadora, falidos, furiosos e vivendo longe de suas casas e famílias (se eles tivessem uma): eram solo fértil para os ideais comunistas.

Não é de admirar que o primeiro decreto dos soviéticos tenha sido sobre a terra: Lênin prometeu devolver a terra aos camponeses. Mesmo que ele não o tenha feito no final das contas, foi isso que ajudou os comunistas a ganharem corpo e fazer a Revolução: o desejo egoísta do imperador e da nobreza de se separar da população geral e viver no ócio.

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