Era proibido ser sem-teto na URSS?

História
EKATERINA SINELSCHIKOVA
Não poderia haver desabrigados na terra da igualdade social generalizada – como a propaganda apresentou a União Soviética ao mundo. Afinal, a existência de moradores de rua simplesmente não se encaixava na imagem de uma utopia idílica. A realidade, porém, era muito mais sombria.

A resposta mais simples é – havia, claro, moradores de rua na Rússia. No entanto, o governo insistia em fazer de sua existência um mito. Mas como esconder dezenas ou centenas de pessoas perambulando pelas ruas em busca de comida e abrigo?

Bem, simplesmente dá a elas um nome diferente.

Como Stálin proibiu a pobreza

Nos primeiros dias após a Revolução, a ideia prevalente era de que os sem-teto e os pobres desapareceriam com o tempo como um triste resquício do antigo regime – assim que os soviéticos concluíssem a construção de um estado de bem-estar. Os bolcheviques mantinham estatísticas sobre o assunto. O censo de 1926 contou cerca de 133.000 pessoas mendigando nas ruas – quase sempre sem-teto.

“Esse fato é digno de destaque, porque a gente pode ver que o problema estava recebendo atenção, era estudado. Em seguida, surgiram pesquisas brilhantes sobre a pobreza – os motivos, as causas e o conteúdo dessa categoria social”, diz Elena Zubkova, pesquisadora do Instituto de História da Academia Russa de Ciências.

O novo governo tomou medidas para combater a pobreza: começou com pequenos regimes de pensões para determinadas categorias de pessoas (tão insignificantes que nem sequer chegavam ao mínimo para sobrevivência) e assistência ao emprego. Paralelamente, estratos inteiros da sociedade russa, como os antes privilegiados, tinham qualquer ajuda simplesmente recusada.

Logo ficou óbvio, no entanto, que a luta contra a pobreza não seria tão rápida ou eficaz quanto se esperava. Anos se passaram, enquanto a máquina de ideologia do Estado continuava a martelar na crença de que o país estava no precipício da felicidade para todos. Então, como lidar com o problema novamente? Basta começar a se referir a ele como um “defeito”.

Na década de 1930, todas as pesquisas foram interrompidas abruptamente, e o problema foi classificado como pessoal, decorrente de algumas escolhas perversas – do tipo alcoolismo e prostituição. Na então nova Constituição da URSS, havia a afirmação de que o país teve sucesso em estabelecer as bases para uma sociedade socialista. No 8º Congresso da União, Ióssif Stálin declarou que as raízes da pobreza e do desemprego haviam sido eliminadas.

Sentença por não ter emprego ou casa

A luta contra a mendicância foi então transformada em repressões generalizadas. Os moradores de ruas eram caçados e expulsos das grandes cidades – uma prática que existia desde os tempos do tsar, como a proibição de determinadas categorias de cidadãos em São Petersburgo e Moscou. Mas foram os bolcheviques que realmente levaram a ideia de “expulsão da capital florescente” ao próximo patamar. Na época, foi referida como “despejo além do quilômetro 101”. A medida costumava ser praticada na preparação para grandes eventos e celebrações nacionais, por exemplo, o 800º aniversário de Moscou, em 1947, ou os Jogos Olímpicos de 1980.

No resto do ano, era usado um procedimento diferente. A polícia pegaria o mendigo na rua e começaria a investigar se ele tinha parentes, se Moscou era seu local de residência e assim por diante. Na ausência de parentes, e havendo capacidade de realizar trabalho físico, as autoridades transferiram o indivíduo para o órgão encarregado de empregos. Os desempregados, por sua vez, eram recebidos em lares para deficientes. Ou assim funcionava no papel.

O esquema não funcionou na realidade. De acordo com Zubkova, havia grandes problemas com emprego, juntamente com a escassez catastrófica de lares para deficientes. Em vez disso, foram enviados para lares de pessoas com distúrbios mentais. O diagnóstico era “rápido”, e dali era quase impossível sair.

Depois, havia a necessidade de um lugar para conter todas essas pessoas que estavam sendo questionadas. Em 1946, surgiram as celas de recepção e distribuição, terrivelmente anti-higiênicas e em péssimas condições. O programa não durou muito.

Em 1951, foi publicada a lei “sobre medidas na luta contra elementos antissociais e parasitas”, estipulando que os sem-teto deveriam ser enviados para áreas especialmente alocadas da União Soviética por um período de cinco anos. Em outras palavras, exílio. Mas a situação piorou mesmo nos 10 anos que se seguiram.

Os soviéticos começaram a processar criminalmente o desemprego – o que chamavam de “parasitismo”. A medida não afetou apenas os sem-teto: pessoas comuns, cuja renda financeira não era oficial, também eram julgadas. E se você não tivesse um teto sobre sua cabeça, era mandado para a prisão por até dois anos.

O caos dos últimos anos soviéticos

Com essas mudanças radicais em vigor, os sem-teto tornaram-se praticamente invisíveis aos olhos do público. Não mais se encontrava no metrô ou na rua. A partir da década de 1960, tiveram que se esconder em porões e sótãos, em abrigos antiaéreos abandonados e em outros locais sem esperança de qualquer assistência.

Para dar o devido crédito, a política social em torno dos sem-teto havia realmente progredido desde a década de 1930. A pobreza, como tema tabu, tinha recebido seu próprio eufemismo na mídia – “bem-estar material abaixo da média”, e foi aí que o governo começou a trabalhar. Por exemplo, na atualizada Constituição de 1977, foi instilado o direito de todo cidadão soviético a uma casa. Mas, segundo o mesmo documento, a regra se baseava no desenvolvimento do fundo estatal e do fundo de habitação social, e isso se mostrou insuficiente para fornecer um teto sobre a cabeça de 250 milhões de soviéticos (290 milhões na época do colapso soviético). 

As coisas pioraram visivelmente no final da década de 1980, quando um forte déficit de alimentos e necessidades básicas no país levou à criação de um sistema de cupons. Os cupons eram distribuídos aos serviços de habitação e, para obter acesso a um, era preciso ter um endereço registrado. Aqueles que não tinham não podiam usar o programa de cupons. “Se alguém conseguia viver ilegalmente e ganhar o suficiente para comprar comida, o sistema de cupons acabou com isso, levando os sem-teto simplesmente a morte”, lembra Valéri Sokolov, ex-morador de rua e fundador da organização Notchlejka para os sem-teto. Ele ficou desabrigado aos 22 anos: havia passado anos na Ucrânia e, ao retornar para sua cidade natal, São Petersburgo, descobriu que os seus parentes o tiraram da lista de inquilinos do apartamento.

Mesmo no fim da União Soviética, as autoridades não estavam dispostas a revelar o escopo oficial da falta de moradia. Anatóli Sobtchak, que se tornou prefeito de São Petersburgo em 1991, declarou que não havia moradores de rua na cidade. O prefeito de Moscou, Iúri Lujkov, afirmava a mesma coisa. Já a lei que puniu os sem-teto, desapareceu do código penal no mesmo ano, junto com a queda da União Soviética.

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