Como Stálin foi escolhido Pessoa do Ano da ‘Time’ por DUAS vezes

História
ALBINA ANDREEVA
De homem mais odiado a defensor heroico da pátria, as atitudes da revista ‘Time’ em relação a Stálin mudaram drasticamente ao longo dos anos. Mas por quê?

Hoje em dia, o ex-líder soviético Iossef Stálin é mais lembrado  como um ditador implacável que aterrorizou milhões de pessoas. Portanto, pode parecer surpreendente – e até estranho –  ver seu rosto na icônica capa com bordas vermelhas da revista norte-americana “Time” – exatamente onde Greta Turnberg, ainda na escola, apareceu em janeiro de 2020. No entanto, por incrível que pareça, ele ganhou esse lugar mais de uma vez – um dos quatro não americanos que o fizeram. E isso é, de fato, revelador do papel que o ex-líder soviético desempenhou na história mundial.

1940 – pelo Pacto de Não Agressão Germano–Soviético

Ano 1939. Uma guerra era iminente. Hitler acabara de tomar a Tchecoslováquia, e futuros aliados – França, Grã-Bretanha e URSS – estavam negociando um tratado de defesa multilateral na tentativa de brecar a Alemanha nazista.

Mas as negociações estavam protelando. França e Grã-Bretanha temiam que Stálin usasse ajuda militar como pretexto para ocupar Estados vizinhos – eles não tinham esquecido a ideia original dos comunistas de uma revolução mundial. Além disso, eles se perguntavam se após os expurgos, o Exército Vermelho seria realmente capaz de lutar. Como o então primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain escreveu a seu amigo: “Devo confessar que tenho a mais profunda desconfiança da Rússia. Não acredito em sua capacidade de manter uma ofensiva eficaz, mesmo que quisesse”.

Stálin, por sua vez, suspeitava que os outros dois quisessem conduzir a expansão de Hitler para o Oriente – de modo que comunistas e nazistas enfraquecessem uns aos outros, salvando a Europa Ocidental de todos os problemas. Ele também tinha todos os motivos para duvidar – ambas as potências europeias haviam acabado de trair seu aliado, a Tchecoslováquia, e permaneceram indiferentes enquanto Hitler apoiava os fascistas na Espanha, anexava a Áustria e despedaçava o Tratado de Versalhes.

Foi em meio a esse clima que Stálin fez uma aposta final – e escolheu assinar um pacto de não agressão com Hitler em vez da perspectiva de aliança instável com a Grã-Bretanha e a França. Com o pacto, ganhou tempo para se preparar para a guerra e, de acordo com o protocolo secreto, moveu as fronteiras soviéticas quilômetros a oeste, anexando o Báltico, a Polônia oriental e partes da Romênia – praticamente restaurando as fronteiras do antigo Império Russo. Hitler, enquanto isso, assegurou a frente oriental e estava livre para guerrear no Ocidente.

Os dois líderes também reavivaram a cooperação econômica que fora drasticamente reduzida após a ascensão de Hitler ao poder em 1933. Quatro dias antes do tratado de não agressão, Moscou e Berlim assinaram um acordo comercial maciço segundo o qual a URSS forneceria ao Terceiro Reich matérias-primas em pagamento por suas máquinas e equipamentos de fábrica. Para Stálin, era importante contar com a tecnologia alemã para avançar a industrialização da URSS; já Hitler, tinha acesso a vastos suprimentos soviéticos para manter sua economia na guerra. 

Dizer que o pacto caiu como um raio é pouco. A revista norte-americana “Time” o chamou de “iniciativa diplomática que literalmente abalou o mundo” e escolheu Stálin como Homem do Ano por sozinho “mudar o equilíbrio de poder da Europa” e, assim, abrir caminho para a Alemanha iniciar a Segunda Guerra Mundial.

“Com um único golpe de sancionar uma guerra nazista e com os golpes posteriores de se tornar um parceiro de Adolf Hitler na agressão, Iossef Stálin jogou pela janela a reputação meticulosamente fomentada da Rússia soviética de uma nação amante da paz e cumpridora dos tratados”, lia-se na revista, que lamentou a atitude de Stálin, depois de anos com ele se posicionando contra os nazistas.

A imprensa europeia ficou igualmente surpresa. O jornal britânico “The Guardian” chamou a medida de “deserção da Rússia” e sugeriu que a URSS e a Alemanha poderiam ter concordado em dividir as esferas de influência na Europa Oriental. Na França, o “Paris-soir” publicou que os trabalhadores em fábricas “esfregavam os olhos lendo as notícias” e comparou o pacto a uma “bomba que explodiu na frente diplomática europeia”.

Paralelamente, a imprensa soviética vivia seu choque próprio – após anos criticando o Terceiro Reich como “agressores” e “invasores fascistas”, tiveram que repentinamente usar uma linguagem mais moderada como “tropas alemãs” ou “alemães”. Ainda assim, a maioria dos jornais elogiou o pacto de não agressão como um passo em direção à paz e publicou o discurso do ministro dos Negócios Estrangeiros Molotov em suas primeiras páginas.

Em sua fala, o ministro acusou Londres e Paris de “lentidão” e atitude “negligente” em relação às negociações da aliança que, segundo ele, deixaram a Moscou pouca escolha a não ser buscar “outras maneiras de garantir a paz e eliminar o risco de uma guerra entre a Alemanha e a URSS”. Esse, segundo ele, era o significado do tratado: acabar com a animosidade entre os dois maiores países da Europa e fortalecer a paz.

A “Time”, entretanto, tinha sua própria ideia dos motivos pelos quais Stálin fez o acordo com Hitler. “Por muito tempo, os russos ficaram obcecados com o pesadelo de um grupo de nações capitalistas que se voltariam contra ela”, publicou a revista, sugerindo que, talvez, tenha sido “esse medo assustador” que levou Stálin “a tomar medidas (...) contra um ataque fácil” .

Até hoje, os historiadores discutem as reais implicações do pacto. O acordo aumentou a defesa soviética contra os nazistas ou ratificou o expansionismo de Stálin? Stálin deveria ter confiado na Grã-Bretanha e na França? Ou ele os enganou em seu próprio jogo de poder? Algum dia saberemos com certeza?

Esse debate nem sempre está polarizado no contexto Rússia vs. Ocidente, embora ambos os lados tenham sua própria abordagem dominante para esses acontecimentos. Estudiosos norte-americanos e europeus costumam ver o tratado como o único ato exclusivamente cruel que deu início à Segunda Guerra Mundial. Exemplo disso é a argumentação é do autor americano Timothy Snyder argumenta: “Não sabemos como a guerra teria continuado sem o tratado (...) o que sabemos é que a guerra, como de fato aconteceu, com todas as atrocidades, começou com a aliança alemão-soviética.”

Alguns vão além e afirmam que, por causa do pacto, tanto Stálin quanto Hitler são os culpados pelos horrores da guerra que se seguiu – uma avaliação que ecoou na resolução do Parlamento Europeu de 2019, afirmando que “a guerra começou como resultado imediato do notório tratado de não agressão nazi-soviético (...) por meio do qual dois regimes totalitários que compartilhavam o objetivo de conquista mundial dividiram a Europa em duas zonas de influência”.

Historiadores russos refutam com veemência essa posição, alegando que o pacto foi apenas o último em uma série de movimentos políticos egoístas e míopes que permitiram a ofensiva de Hitler. “O conluio com Hitler foi um cenário testado antes pelas democracias ocidentais”, escreve Artiom Malguin, do Instituto Estatal de Relações Internacionais de Moscou. As ações soviéticas, segundo Malguin, foram tão cínicas quanto a política de apaziguamento da França e da Grã-Bretanha, mas “a União Soviética recorreu ao conluio com Hitler quando confrontada com uma ameaça militar muito maior para seu próprio território e no momento em que a Alemanha estava muito mais bem preparada para a guerra”.

O presidente russo, Vladimir Putin, em seu artigo de 2020 para a publicação National Interest, aponta que “ao contrário de outros líderes europeus da época, Stálin não se desonrou ao se encontrar com Hitler, que era conhecido entre as nações ocidentais como um político respeitável e era um convidado bem-vindo nas capitais europeias”.

Uma coisa é certa, porém – os eventos que se seguiram custaram caro às nações do Leste Europeu. Depois que Stálin anexou os territórios, ele iniciou prisões em massa e deportações para esmagar qualquer resistência antes que pudesse tomar forma. Na Polônia, 22 mil oficiais foram executados no massacre de Katyn e cerca de 325 mil cidadãos comuns foram enviados a assentamentos e campos especiais entre setembro de 1939 e junho de 1941, conforme a estimativa do grupo de direitos humanos Memorial. Na Estônia, 10 mil pessoas foram deportadas no mesmo período; Letônia e Lituânia tiveram 17 mil e 17,5 mil deportações, respectivamente. Além disso, ao menos 30 mil cidadãos também foram banidos das regiões anexadas da Romênia.

Em 1989, a União Soviética condenou os protocolos secretos do pacto, por serem ilegais e violarem a soberania e integridade territorial de outras nações. Em 1940, a revista “Time” fez um julgamento ainda mais severo dizendo que, ao atacar seus vizinhos, Stálin traiu os socialistas em todo o mundo e o equiparou ao Führer “como o homem mais odiado do mundo”.

1943 – pela defesa heroica de Stalingrado

Mas qualquer que fosse a descrição contundente que a “Time” fez da Pessoa do Ano em 1939, o cenário mudou três anos depois – e, 1943, Stálin foi novamente nomeado ao título, agora como um líder de vontade de ferro, um estadista incansável que se levanta firmemente contra as hordas nazistas – e os transforma “em pó”.

A revista chegou a dizer, com meias palavras, que Stálin salvou não apenas a Rússia, mas todo o continente europeu, pela maneira como se manteve firme em Stalingrado.

“Se as legiões alemãs tivessem ultrapassado a teimosa Stalingrado e liquidado o poder de ataque da Rússia, Hitler não teria sido apenas o Homem do Ano, mas teria se tornado o senhor indiscutível da Europa”, lia-se na “Time”, ao descrever a maior e mais sangrenta batalha de toda a Segunda Guerra. “Mas Iossef Stálin o impediu.”

Foi nas ruas queimadas e ensanguentadas de Stalingrado que os soviéticos quebraram a espinha dorsal da máquina de guerra de Hitler. A Alemanha e seus aliados presenciaram a perda de até 850.000 de seus soldados – mortos em batalha, feridos e capturados. O Exército Vermelho pagou um preço mais alto – 1,1 milhão de baixas.

As perdas de civis também foram graves; milhares de pessoas morreram sob bombardeios impiedosos, de doenças e fome, ou nas mãos dos invasores. Em 1943, uma comissão especial do Estado que investigava crimes nazistas na região relatou que 38.554 cidadãos da região de Stalingrado foram deliberadamente mortos ou torturados até a morte pelas forças de ocupação, enquanto 42.797 morreram em bombardeios e 64.224 foram levados para a Alemanha para trabalho escravo. Atualmente, historiadores dizem que o número real pode ser ainda maior – alguns estimam que pelo menos 235 mil civis morreram na cidade e arredores durante a batalha, embora a questão permaneça pouco estudada.

Ainda assim, após cinco meses de combates brutais, Stálin deu a Hitler uma derrota da qual o Führer não se recuperaria. E ele conseguiu isso, de acordo com a “Time”, contando com pouco mais do que pura vontade – sua e do povo russo.

Uma grande parte de seus exércitos se foi; junto com fazendas e indústrias; milhões foram levados para a frente; então em casa, os homens agora cortavam lenha e trabalhavam nas plantas junto com as mulheres e, muitas vezes, crianças. A ajuda dos Estados Unidos chegaria tarde demais, interrompida por ataques alemães às rotas, e uma segunda frente europeia não seria aberta até 1944.

“Só Stálin sabe como conseguiu fazer de 1942 um ano melhor para a Rússia do que 1941”, dizia o artigo da “Time”. “Mas ele o fez (...)O povo russo resistiu.”

“A magnífica vontade do povo russo de resistir” foi a chave, mas também o foram a diplomacia e a incansável política de Stálin, segundo a revista. Enquanto seu povo, subnutrido e sobrecarregado, lutava em batalhas, Stálin planejava estratégias, escolhia líderes do exército hábeis e aumentava o moral da nação ao prometer ajuda vinda dos Aliados – e pressionando implacavelmente para isso acontecer.

Essa última parte nem sempre transcorreu de maneira suave. No outono de 1942, quando as entregas de ajuda pela rota do Ártico foram suspensas e a batalha de Stalingrado estava em curso, Stálin escreveu uma carta ao correspondente da AP em Moscou, Henry Cassidy, instando os líderes ocidentais a “cumprirem suas obrigações integralmente e no prazo”. Ele também chamou a ajuda dos Aliados de “pouco eficaz”, em comparação com “a ajuda que a União Soviética está dando aos Aliados, atraindo sobre si a principal força do fascista alemão”.

As fábricas e usinas que Stálin tinha construído em sua industrialização implacável e pioneira desempenharam um grande papel em 1942, quando a URSS se segurava por um fio e não podia contar tanto com os Aliados. Como publicou a revista, a força surpreendente da URSS na Segunda Guerra mostrou que Stálin, de fato, conseguiu transformar a Rússia “em uma das quatro grandes potências industriais da Terra”. A “Time” chegou a afirmar que os métodos “duros” de Stálin “valeram a pena” – algo impensável de se dizer, dado ao custo humano de seus grandes projetos.

Stalingrado, sem dúvida, virou a maré da Segunda Guerra Mundial contra Hitler. É verdade que as forças aliadas obtiveram outras vitórias cruciais em 1942 – os britânicos derrotaram a Alemanha em El Alamein, no norte da África, e os americanos conseguiram resistir com sucesso ao Japão no Pacífico. Mas, segundo a “Time”, essas realizações, “por mais dignas que possam se provar (...) eram inevitavelmente pálidas em comparação com o que Iossef Stálin fez em 1942”.

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